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(296 Krischna, a Vênus do sexo – Cassandra Rios no front

(296 Krischna, a Vênus do sexo – Cassandra Rios no front
Cassandra Rios em 1980. Acervo particular.

Na continuação dos textos sobre Cassandra Rios, divido mais do que recolhi quando, nos meus idos de estudante de Graduação em História, na Univates, ansiava para que fosse meu tema de trabalho de conclusão de curso. Depois de abandonar da ideia, pensei em escrever uma biografia, mas acabei deixando de lado para avançar em projetos sobre a história LGBTQIAPN+ no Rio Grande do Sul.

Com o compartilhamento das matérias, na Parêntese, parte do acervo que reuni, sobre o qual eu vinha sentado, vem a público. Entendo que, mesmo passados muitos anos, ainda guardo material e memórias não alcançadas por outros pesquisadores, que vêm demonstrando cada vez mais interesse na escritora, na vida e obra. Falando nisso, faz poucos dias que concedi uma entrevista para pessoas interessadas em fazer um filme semificcional sobre a vida dela.

Muitos cogitam que Cassandra, porque sempre vinculada à censura, teve uma vida infeliz e dura. Ela não escapou de períodos de depressão, de dificuldades, mas, por outro lado, teve muitas oportunidades, conheceu incontáveis pessoas, viajou, teve estabilidade financeira, tornou-se nome popular e conseguiu realizações na vida amorosa. Conduzia-se de maneira relativamente comportada para os padrões hodiernos, mas, naquele tempo, as pessoas escandalizavam-se por pouco. Nascida em 1932, quando comprou uma lambreta, na qual desfilou pelas ruas, deixou muita gente boquiaberta.

A vida íntima lhe reservou o namoro com Therezinha Couto, chamada de Teca. Depois conheceu Vera Ortega, que aparecia com o nome de Pabla, com quem ficou por quase duas décadas, já falecida. Ainda namorou Vera Railda, também falecida. Alguns ainda citam uma moça chamada Tiara – que outros acreditam ter sido mais um dos pseudônimos de Vera Ortega. As relações não eram tão discretas quanto faz pensar a resistência em falar da vida particular, que manteve como constante em entrevistas para a imprensa.

Como escritora, com o pseudônimo de Cassandra Rios, se viu às voltas com o escarcéu provocado, desde A volúpia do pecado, em 1948, em uma sociedade extremamente atrasada na pauta de gênero. Nesse quesito, se destacou como vanguardista nacional em romances com protagonismo de personagens lésbicas, trans e gays. Seu maior mérito foi a persistência na defesa dessas temáticas atacadas pela moralidade hipócrita, vedadas pelo Estado, marginalizadas pela religião cristã e depreciadas por muitos escritores que não aceitavam seu ponto de interesse como parte do que pode abordar a “literatura séria”. Ela tinha riqueza vocabular, sensibilidade, ousadia – não era nenhuma indigente literária como a pecha de pornográfica, flagrantemente injusta, induzia a pensar.

Dessa feita, vou abordar o pioneirismo em apresentar grupos trans, algo que já foi identificado em trabalhos acadêmicos, pelo estudo das obras Uma mulher diferente e Georgette. Sobre estes textos, surgem algumas novidades. O diferencial maior é o acréscimo do título Krischna, a Vênus do sexo, romance que passou batido pelos pesquisadores, que, creio, desconhecem sua existência – já que não aparece em nenhuma busca no Google, em nenhuma relação dos livros publicados pela autora, algo que já foi objeto de investigação de vários estudantes e professores.

Sensibilidade e identificação: Georgette

No ano de 1952 (ou 1956, conforme outras referências), Cassandra publicou um romance que, ainda hoje, apresenta uma narrativa psicológica verossímil e sensível, efetivamente acurada sobre a realidade das pessoas travestis. Trata-se de uma espécie de “biografia” do jovem Bob, que começa a lidar com desejos e a vontade de entender mais sobre o que são os impulsos eróticos que afloram. A narrativa acompanha sua trajetória desde a infância, passando pelas vivências com colegas de aula, por quem se apaixona, até assumir uma relação relativamente estável com um fazendeiro, que leva uma vida dupla, porque é casado e tem filhos.

Estão presentes as expectativas de representação máscula em meninos nascidos em uma sociedade patriarcal, as complicadas paixonites de adolescente, a descoberta gradual da sexualidade – com momentos de violência, dúvida e expectação por afeto. Também é marcante o interesse na transição entre um corpo biológico masculino para um idealizado feminino, naquela época alcançado com roupas, perucas e maquiagem, ainda não com intervenção cirúrgica e hormônios artificiais.  Tudo é muito bem colocado, apropriado ao tempo, despertando um avolumado número de identificações no leitor LGBTQIAPN+, mesmo o de agora.

Diferentes edições de Georgette. Foto: Jandiro Koch

Além de uma escrita fluida, o livro, quando saiu, pela editora Spiker, apresentou uma capa bem pensada. Ao longo do texto, uma série de fotografias de um jovem em transição de gênero. Isso é realmente revolucionário, jovem, oxigenado e audacioso. Certamente considerado totalmente inadequado pelos literatos ditos sérios.

Existe uma controvérsia sobre o título, se é de natureza biográfica ou não. À introdução, Cassandra mencionou que boa parte da história tivera como pano de fundo a cidade de Aquidauana, em Mato Grosso. O município, depois da separação de Mato Grosso do Sul, em 1977, passou a integrar o novo Estado. A transformista e performer Valéria Fernandez Gonzalez, pelo Facebook, postou ter convivido com Georgette. Teria sido uma contemporânea dela e de Rogéria, uma das mais reconhecidas vedetes-travestis do Brasil. Georgette era apaixonada por livros e por fotografias e posters de estrelas de cinema, artigos que colecionava. Certa feita, o cinema Metro, em São Paulo, recorreu a ela para ornamentar a vitrine, na data da exibição do filme E o vento levou, já que tinha impressos mostrando cenas da película.

No livro, Cassandra retratou a habilidade de Bob/Georgette com roupas, sua inspiração para desenhar figurinos. Valéria, por sua vez, comentou que ela tinha sido amiga do estilista Clodovil, com quem, não raras vezes, entrava em atrito. Se as lembranças de Valéria estiverem corretas, Georgette nasceu no Mato Grosso, em uma família de sobrenome Miranda. O óbito foi registrado em 1978.

Acontece que Cassandra sempre negou ter escrito além de pura ficção. Em Mezzamaro, flores e cassis, uma das duas autobiografias da escritora, inferiu ter investido em Georgette “impressionada com a beleza dos transformistas”. A autora enfatizou que as fotografias ilustrando o texto eram de alguém que conhecera como George, que recebeu um cachê da editora para participar do projeto. Apesar de George ter afirmado, ao estilista e entrevistador Clodovil, que o livro narrava sua história, Cassandra destacou, ao mesmo Clodovil, que a informação não procedia. Alegava tê-lo conhecido depois que o original já estava na editora. A ideia de inserir as imagens teria adiado a impressão. Controvérsia à parte, ela recordou do episódio com carinho, empolgada com o entusiasmo de George/Georgette com “um dos mais tristes e sensíveis romances” entre a sua bibliografia.

Fotografia de George/Georgette. Edições Spiker. Imagem: Acervo de Jandiro Koch

Cassandra advertiu que muitos de seus livros, com uma grande sequência de reedições, por editoras diferentes, tiveram copy desk mal feito, tornando partes até mesmo ininteligíveis. Isso me leva, sempre que posso, a buscar as primeiras edições. De Georgette, recomendo a da Edições Spiker, a mesma das fotos. Sediada no Rio de Janeiro, essa empresa incorporou o espólio de outra famosa marca no ramo, a Livraria Quaresma. O portfólio, a partir de 1956, contou com nomes da literatura popular internacional, entre eles Emílio Richebourg, Enrique Perez Escrich, Xavier de Montepin e Pierre Dunfond. Infelizmente as informações sobre editor e artistas plásticos, responsáveis pelas capas, estão ausentes dos volumes. Foram trabalhos com relação com as histórias, de bom resultado visual.

As mulheres diferentes

A Spiker também lançou Carne em delírio (1958); A lua escondida (1958); Eudemônia (1958); O bruxo espanhol (1959); O gamo e a gazela (1959); Copacabana posto seis (1961), tendo a autora com um dos principais nomes no catálogo. Maior repercussão aconteceu, nos anos 1960, quando Cassandra passou a ser acusada de imoralidade, com ordens judiciais para o recolhimento dos volumes de livrarias e bancas. O juiz Cavalcanti de Gusmão, em 1964, alegou que sua escrita tinha o “exclusivo intuito de despertar a lascívia, despertar e exacerbar o instinto genésico e sugerir distorções doentias”, coisa que o cânone literário não rebatia.

Apesar da censura em alta, nova incursão no mundo trans se deu, em 1968, quando a Spiker esmaecia no cenário literário. Uma mulher diferente saiu pela Editora Terra, sediada na rua 25 de Março, em São Paulo. Com uma linda capa feita por Luiz Edmundo, a introdução foi assinada por T. T. Ferrari, que elogiou o detetive criado pela ficcionista de estilo inimitável, cuja marca era “o drama psicológico, o homossexualismo, nas múltiplas variações.”

Os shows de transformistas e travestis pipocaram pela década de 1960. No Rio de Janeiro, Ivan Vítor Ulisses Monteiro Damião fazia barulho como Yvaná, empresariado por Walter Pinto, no Teatro do Recreio. Os bailes de travesti, no Teatro São Caetano, eram memoráveis. Manon – Arthur Weldon – subia a ribalta na boate Stop, não parando mais. A boate Favela foi iluminada pelas travestis. Ektor Von Hoffmeister, gaúcho elogiado por suas performances como Sophia Loren, foi arregimentado por Carlos Machado, que passou a empresariá-lo no show Vive les femmes. Ektor levava as mulheres e os homens à loucura. Conforme o Diário da Noite, de 17 de outubro de 1961, ele arrebatara o coração de uma grã-fina casada. O escritor e crítico de arte Francisco Bittencourt, anos depois, na autobiografia romanceada Bico!, confirmaria que Ektor também inebriou um pintor famoso, no Rio de Janeiro.

Já em São Paulo, em 1961, começou a despontar a travesti Jacqueline. Assim como a “rival” Yvaná, tinha habilidade com a voz, ao contrário de Ektor – embora, ironicamente, para este tenha sido proposta a gravação de uma música pela RCA Victor. A arte travesti, os shows de “vedetes” vicejavam. Enquanto isso, muitas foram recolhidas à delegacia por andarem vestidas com roupas do sexo feminino em local público – assim aconteceu com Yvaná. Proibições legais dos shows foram tentadas desde antes de 1964.

Na segunda metade de 1964, começou a divulgação daquele que se tornou uma das mais lendárias performances travestis.  Les Girls arrolou alguns dos nomes mais ouvidos dali em diante, incluindo Rogéria, Marquesa, Wanda e a negra Carmen. Muita gente, hoje em dia, as chama de precursoras. Na verdade, foram um ápice de uma forma não única de expressão, algo que surgiu muito antes. No livro O gaúcho era gay? Mas bah (1737-1939), elenquei alguns dos nomes fortes que reverberaram anteriormente, chamados, na primeira metade do século XX, de homens-mulheres, de transformistas, pessoas como Mirko, Aymond, Walter Bank e Darwin, celebridades da noite, chamarizes para grandes plateias.

Vivendo em São Paulo, Cassandra estava frequentemente no Rio de Janeiro, indo e vindo na ponte em que se dava esse fervilhar. Naturalmente lia sobre e conheceu muitas figuras célebres, tendo elementos suficientes para balizar as criações ficcionais. Em Uma mulher diferente, apresentou Ana Maria, travesti que trabalhava, na noite paulistana, na boate Escaravelho Dourado. A identidade de gênero foi revelada ao início da narrativa, que retrocedeu no tempo a partir de um assassinato. O caso se tornou objeto de atenção de Grandão, uma espécie de detetive e repórter de porta de cadeia, muito interessado em furos jornalísticos.

Grandão é um personagem bem elaborado, bronco, machista – portanto real. Para o detetive, Ana Maria “era um homem que se fazia passar por mulher. Para ganhar a vida. Porque era um anormal. Um pederasta… um ‘bicha’.” Ao mesmo tempo, ele percebia qualidades morais, o que faz com que o leitor espere por alguma plot twist no imaginário fóbico.

Diferentes edições de Uma mulher diferente. Foto: Jandiro Koch

A narrativa avança com depoimentos de alguns suspeitos, interrogados em uma busca pessoal,  sem relação com a investigação policial.  Antônio, dono de um bar, achou que tinha dado a sorte grande porque uma mulher tão bonita lhe botara os olhos. Só descobriu que era uma travesti quando já estava envolvido. Apesar de assustado, em conflito consigo, não escolheu a separação. Antônio permaneceu na relação até a chegada de Loirinho, um indivíduo ciumento e violento. Outro suspeito é o Dr. Barbosa, homem bem de vida, usuário de drogas.

Grandão fez os interlocutores contarem, em detalhes, sobre seus envolvimentos com Ana Maria. A descrição de cenas de sexo é muito perspicaz, sem ser pudibunda e nem explícita e nem quantitativamente excedente – ou numerosa como podem supor. Hoje escrevem muito mais diretamente. Aliás, Caio Fernando Abreu e até João Gilberto Noll escandalizariam aquela Cassandra.

À semelhança de outros livros da autora, a teoria sobre gênero apareceu. Ela sempre quis encontrar uma explicação para a existência das identidades dissidentes – e de si mesma. Neste título, Ana Maria, que exigia ser chamada no feminino, acreditava que “subjetivamente, as criaturas não escolhem nome para serem batizadas, nem sexo para o registro, nascem o que são fisicamente e assim são criadas. Psicologicamente definidas, profissionalmente realizadas escolham muitas um pseudônimo. Conclua daí que contra a física está a força psíquica do Eu.” Mesmo que a Ciência resolvesse dissecá-la, diz: “[…] Não encontrarão o que me faça assim, pois está na vontade que nasceu comigo!”

Infelizmente, Ana Maria encontrou um indivíduo que, diferente de Loirinho, Dr. Barbosa e Antônio, não aceitou estar diante do que entendeu ser um “homem disfarçado”, uma “coisa” que poderia ser morta na defesa de sua honra.  Essa era a razão – e continua sendo – alegada por muitos assassinos de pessoas trans, no mundo real, no Brasil, país com alto volume de violências contra pessoas trans. Cassandra sempre se disse uma escritora realista.

Há um interessante fio da meada, permeado pelo olhar pela fechadura, com acesso às relações sociais hipócritas, tudo apresentado por meio das entrevistas de Grandão com os suspeitos. A impressão de que o detetive busca suprir uma curiosidade íntima é bem posta – ou aconteceu acidentalmente e funcionou. A história mantém a atenção, é bem arquitetada. Para mim, há apenas uma falha. O desfecho não está à altura do desenvolvimento. Quando se descobre que o detetive sempre soube quem era o verdadeiro culpado, elemento que deixou para alcançar depois dos demais. Deixa uma inquietude, porque, a não ser que estivesse buscando reunir material para suas colunas jornalísticas, não se justificam os interrogatórios pregressos.

Krischna, a Vênus do sexo

São Paulo e Rio de Janeiro, como dito acima, fervilhavam de lugares em que se encontravam transformistas, travestis, lésbicas e gays. As mulheres iam a bares como o Ferros’s, o Bixiguinha e o Cachacão (também conhecido como Último Tango). Cassandra frequentava a boite Nostro Mondo, onde Darby Daniel, uma espécie de relações públicas, apresentava travestis talentosas. Entre elas, Condessa, sobre quem, em 1982, ela escreveu: “Seus trajes são lindíssimos! Muita renda fina, Muita seda pura, strass, plumas, cores, ton-sur-ton, maquiagem perfeita[…]. Voz macia, sensual, ademanes e trejeitos delicados, um requinte e um trato de luxo nos mínimos detalhes. Pisa macio, tipo felino, sandálias de saltos finos e altos, mãos que suavizam gestos, unhas sempre esmaltadas, compridas […]. A condessa canta (dubla), é apresentadora de outros artistas, tem seu palco onde vive o que gosta de ser e fazer todas as noites. Tem público constante, plateia lotada, fiéis que a prestigiam, considerando-a uma verdadeira dama da noite, noite de sorrisos, de alegria, de grandes desfiles, […] a Condessa é dona das noites paulistas.”

A boate Moustache ficava na rua Sergipe, nos fundos do cemitério da Consolação, não longe apartamento de Cassandra, na rua Cesário Motta Júnior.  No início dos anos 1980, a loira Tuca Rubirosa, oriunda da cidade de Ponta Grossa, no Paraná, e Eliana Thompson, encantavam em temporada de apresentações, vindas de Paris, onde faziam a vida. Cassandra as mencionou como “as moças nascidas de cirurgias”, que moldavam os corpos com hormônios e silicone e, se possível financeiramente, com cirurgias de redesignação sexual fora do país.

Foi nesse novo cenário que a mãe de Georgette e Uma mulher diferente, durante os anos de 1981 e 1983, gestou o que ela batizou como “romancinho”:  Krischna, a Vênus do sexo. Do primeiro ao sétimo, a obra se divide em pequenos capítulos. A última parte é extensa, sem novos subtítulos. Como não há descrições desse trabalho em lugar algum, a primazia merece detalhamento:

Pesadelos – Capítulo I

A história começa com os pesadelos de Carlos, que acorda em sobressalto após sonhar com uma moça morta a tiros. Trata-se de Krischna, uma mulher que vinha chamando a atenção no cinema, no teatro e na televisão, o novo símbolo sexual nacional.

Emoções – Capítulo II

Com receio de que o pesadelo pudesse se tornar realidade, porque já tivera outras experiências nesse sentido, Carlos, um famoso jornalista, passa a acompanhar a vida da artista pelos periódicos e revistas. Dá-se conta de que é capaz de prever seus próximos passos, o que o assusta mais ainda em relação ao provável assassinato. Krischna, “um espetáculo audiovisual”, está cada vez mais em evidência.

A Prova – Capítulo III

Carlos, em razão da profissão, costuma receber convites para comparecer a eventos. O empresário de Krischna o chama para o lançamento de um filme, sugerindo a Carlos que faça uma matéria sobre ela, já que é um dos únicos que nunca a abordaram. Esse contato confirma a impressão de que seus pesadelos são, de fato, uma nova premonição.

Tentação – Capítulo IV

Com o telefone da artista em mãos, Carlos demora para responder. Ela continua em alta na imprensa, por vezes associada a artistas homens, alguns deles “famosos como homossexuais”, com quem supostamente estaria mantendo casos.  O jornalista tinha um pressentimento de que ela não era a pessoa representada no reino das fofocas, de que era, na verdade, “uma vida torturada que o seu sorriso sempre tentava esconder”, um rosto que fingia uma “felicidade falsa”.

Ação – Capítulo V

À falta do retorno de Carlos, Krischna toma a iniciativa de telefonar. Ele acha estranho que uma pessoa com a projeção dela estivesse interessada em aparecer em sua coluna no jornal, ao mesmo tempo em que fica envaidecido pela aproximação.

Confidências – Capítulo VI

Com pretensão de se afastar do teor sensacionalista em relação a Krischna, Carlos pretende escantear “o lado escandaloso e libertino da vida dela”. O jornalista almejava descobrir quem é a pessoa por detrás da imagem pública, isso antes que ela termine, como muitos, por “confundir-se com o próprio brilho”, pessoas que não raro restam “como uma lantejoula pisada no salão vazio no final de uma festa.” Carlos sugere que conversem mais vezes, por telefone, para que ela lhe relate sobre sua vida sem reservas.

Revelações – Capítulo VII

O primeiro diálogo deixa a sensação de que nela transparecia uma “carência inconsciente de ter com quem se abrir.” Krischna quer que Carlos escreva a sua história, mas faz uma exigência, que seja usado um pseudônimo e que sua identidade jamais seja revelada. Em pouco tempo, o jornalista se vê com o pensamento fixo na artista. A essa altura, aparece Alice, namorada de Carlos, que já engravidara dele, no passado, do que resultou um aborto a pedido do companheiro, o que deixara, nele, uma sensação de que era “imoral e perverso”.

A relação entre Carlos e Alice é carnal. Ele não se sente enamorado a ponto de propor um compromisso. Alice nota que algo fora da curva vem acontecendo. Ele alega estafa no trabalho. Logo dá com a língua nos dentes e menciona que tem tido premonições com uma moça, o que muito o preocupa. Alice o convence a lhe dizer de quem se trata. Quando ouve o nome de Krischna, é tomada por ciúmes e o acusa de estar apaixonado por uma “vândala que só sabe remexer os quadris obscenamente e sussurrar com voz de gata no cio.”

Enquanto Alice é tomada por desconfianças, Carlos continua recebendo telefonemas de Krischna, que lhe explica como reage ao provocar tanto desejo nos homens que a veem no palco. Por fim, Alice sugere que pode auxiliar o jornalista em relação às premonições sobre o assassinato, pois notara como o assunto o  deixava afoito. Carlos andava desconfiado de seus sentimentos: “Premonição? Intuição? Alucinação? Desejo transformando-se em imagens? Coisas que ele não queria admitir e aceitar, rebaixando-se ao nível de um fã histérico, desequilibrado, agarrado por sensações ridículas e vulgares […]”.

Alice sugere que seja apresentada a Krischna como secretária de Carlos. Ambos vão ao coquetel de lançamento na casa dela. Chegando lá, Krischna pega Carlos pela mão e o conduz até o quarto, onde decide conceder uma entrevista. Enquanto permanecem no quarto, os demais convidados tecem comentários jocosos no andar de baixo.

Diante do jornalista, a artista informa que era chegada a hora de lhe revelar “o mais inesperado e inimaginável segredo” de sua vida. Quando ela começa a se despir, Carlos fica apreensivo. Não sabe como reagir. Ela prossegue, deixando-o atônito diante do que vê e ouve. Filha de roceiros, vinda do sertão, conta sobre a relação com a família: “Nunca me mostraram. Esconderam-me como um animal, uma aberração, não quiseram me levar a médico nenhum.” A nudez estarrece Carlos, que se vê diante de uma “diabólica e fascinante criatura.”

Krischna volta a se vestir, enquanto indaga se ele ainda a desejava, o que era óbvio antes de se desnudar. Ele a puxa ao encontro de si, mas ela, acreditando-se um “monstro”, o rechaça. Explica que todas as maledicências em torno de sua biografia, os casos amorosos, os escândalos, nada é verdadeiro, pois existe um impedimento físico à consumação dos relacionamentos.

Com a demora de Krischna, os demais presentes ameaçam debandar. Uma jovem vai até o quarto, informa a artista de que a esperam e de que sugerem ir embora se não retornar logo. Carlos desce primeiro, pálido e tenso. Ele lembra da pergunta lancinante, se mantivera, depois de saber a verdade, a capacidade de amar uma mulher como ela. Ele respondera sim.  Ao mesmo tempo, a alucinação lhe voltava, os tiros, o assassinato.

Ela sai do quarto, chega à escada. Todos se voltam para vê-la. Ela começa a se despir, da mesma forma que fizera, momentos antes, diante do jornalista. Desnuda os seios. Carlos começa a galgar a escada, tenta impedi-la. Ela saca um pequeno revólver e atira contra o peito. O corpo cai por alguns lances até ser amparado pelo jornalista. Chama-se a ambulância. Chega a polícia. Carlos e o delegado Seixas seguem até o hospital, onde Krischna é operada. Uma multidão de fãs está reunida em frente à casa de saúde. No meio do trajeto para a casa de saúde, Carlos tem nova premonição, a de que não há mais tempo. Desconsolado, chora. No necrotério, ele se debruça sobre o corpo da mais sensual das mulheres e se despede: “Eu amaria você de qualquer jeito.”

Conforme o médico que a atendera, aquela que despertava paixões avassaladoras em incontáveis homens “era uma infeliz, uma aberração da natureza. A Vênus do sexo não tinha sexo! Não tinha órgãos sexuais externos, apenas um pequeno orifício.”

Montagem com fotografias de George/Georgette. Acervo de Jandiro Koch

Cassandra no front

O quinto capítulo foi precedido de uma advertência em capslock: “Qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou mortas, será mera e desproposital casualidade, uma coincidência.” No sétimo capitulo, Cassandra retomou o teor, dizendo “vejo-me obrigada […] a repetir e afirmar que a personagem Krischna é irreal, fictícia, não existe […] nenhum personagem do romancinho publicado […] é real.” Não é tão difícil entender a suspeita dos leitores. Cassandra, na época, assim como seu personagem Carlos, era colunista em jornal. Ela tinha uma namorada, que fingia ser sua secretária – Alice sugeriu o mesmo disfarce para Carlos. Sem contar que havia uma pessoa que estava contando sobre sua vida, para uma biografia, para Cassandra.

Mas há outros elementos. As pessoas talvez tenham desconfiado de Roberta Close? Conforme entrevista recente, antes da cirurgia, ela possuía conformações hermafroditas/intersexo. Ainda antes de submeter à operação, ela causava furor em peças teatrais, nas quais aparecia nua. Teve rápidos flertes com homens considerados machos raiz. Entre eles, Erasmo Carlos, Waldick Soriano e Jece Valadão. Ninguém tirava a mente dela. Desde 1981, era a figura travesti imbatível, estampando matérias em revistas como a Manchete, onde aparecia em chamadas sobre as “bonecas” – terminologia em voga. No mesmo ano, foi eleita Miss Brasil Gay, em evento realizado na famosa casa Pink Panther (1973-1995), na cidade de Santos.

A revista erótica Close, de onde surgiu o sobrenome adotado por Roberta, veio antes – Cassandra escreveu alguns contos para essa publicação. Mas poderia ser outra – não existia somente Roberta Close. Contudo, como a escritora insistia, talvez Krischna, a Vênus do sexo seja somente fruto de uma mente criativa – claramente amadurecida no contexto da época. Enquanto Cassandra o denomina “romancinho”, eu o vejo como um conto mais extenso, são poucos personagens e um ponto focal. A escritora nunca retornou a esse material, uma revisão seria suficiente para aparar pequenos lapsos, erros de impressão.

Detalhes de lado, o que é evidente é que se vê, novamente, Cassandra no front. Com um texto que, provavelmente pela primeira vez, dá protagonismo a uma pessoa intersexo, nome pelo qual são denominados os hermafroditas hoje. Logo depois desse projeto, Cassandra ficou entusiasmada pela possibilidade de colocar em circulação a tal biografia que vinha escrevendo. Terminou alguns capítulos sobre a vida de uma jovem que viera, com uma mão na frente e outra atrás, para São Paulo, onde conquista espaço, tornando-se empresária.

Mesmo animada, Cassandra interrompeu a história, porque a mulher que a inspirava decidiu que queria que sua vida fosse contada por outra pessoa, que lhe prometera lançar o projeto em uma grande editora. Certamente a desculpa é estranha, uma vez que Cassandra estava vinculada à editora Record e que, sabia-se, seus livros tinham potencial de vender a rodo. A primeira tratativa da biografada com uma outra ghost writer não deu certo. Ela voltou a pedir a Cassandra que terminasse o texto, o que foi feito. O livro recebeu o título de A última palavra.

Depois de muito trabalho de pesquisa e entrevistas, novamente a biografada pediu pelo cancelamento do projeto, dizendo que pretendiam fazer um filme sobre sua vida, queria evitar spoilers. Cassandra relatou o caso, sem mencionar o nome da parte interessada, na biografia Mezzamaro, flores e cassis. Mas não é difícil saber de quem tratou. Era ninguém menos do que Lilian Gonçalves, que, à época, ainda não revelara a público que era filha do cantor Nelson Gonçalves, que nunca a assumiu. Lilian acabou publicando uma autobiografia, provavelmente escrita por ghost writer, em 1991.

Em 1986, depois de Krischna e A última palavra, Cassandra tentou se eleger vereadora em São Paulo, candidata pelo PDT. Sua candidatura é pouquíssimo lembrada, nos dias de hoje, por quem pesquisa o começo das tratativas entre ativistas e militantes LGBTQIAPN+ com grupos político-partidários. Mas essa é outra história.

 


Jandiro Adriano Koch, ou Jan, nasceu e vive em Estrela, RS. Graduou-se em História pela UNIVATES e fez especialização em Gênero e Sexualidade. Com cinco livros lançados, dedica-se a estudar e mostrar vivências LGBTQI+, especialmente em sua região, o Vale do Taquari. O gaúcho era gay? Mas bah! é seu último título, lançado em 2023.

 


As opiniões emitidas pelo autor não expressam necessariamente a posição editorial da Matinal.

Jandiro Koch

Graduou-se em História pela UNIVATES e fez especialização em Gênero e Sexualidade. Com cinco livros lançados, dedica-se a estudar e mostrar vivências LGBTQI+, especialmente em sua região, o Vale do Taquari.

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