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(296 O Curandeiro Aleluia

(296 O Curandeiro Aleluia
Foto: Vinicius Xavier

Mateus Aleluia já havia me ensinado a ver o cinza como um início em cor. À época, meados de 2012, um jovem indo morar em São Paulo, assombrado com tamanha dureza do seu concreto monolítico, encontrei, no canto de Aleluia, um início em cor onde o amor sempre há de renascer.

Norteado por esta inspiração, dei vazão aos meus apetites literários, sendo o maior deles materializado em um blog pessoal, que chamei de Cobertura Poética SP. Consistia em cobrir, em um estilo que condensava prosa e poesia, os eventos e fenômenos culturais e políticos da vida urbana que ora participava, ora me envolvia. Quando voltei a Porto Alegre, em 2013, o cenário mudou, assim como o projeto. Doze anos mais tarde, cá estou renascendo-o das cinzas, graças a ele.

Anos depois, os caminhos me trouxeram novamente a Aleluia. Em um pitstop da viagem que fiz à Brasília para visitar minha irmã, fui à Chapada dos Veadeiros, no já vintenário Encontro de Culturas e Povos Tradicionais na Vila de São Jorge – GO. Ao fundo, o sol se punha, escondendo-se nos imensos Chapadões do Parque Nacional, cobrindo o céu com incontáveis e incontíveis corpos celestes. Eu, sentado no chão batido de uma aldeia, de pernas em Lótus, mirando no primeiro plano ele: vigoroso como um quilombola; altivo como um orixá. Entoou suas canções e seus rezos, brilhando com sua magia concedida pelas Divindades afro-brasileiras. Eu, ainda em luto desde o intervalo que liga meus pés a esses chãos (fora meu pai que me apresentara a Chapada em tempos de outrora), escutava-o numa espécie de transe epifânico silencioso. Retirada as barragens que represavam as lágrimas, vi meu pai nos olhos desse homem. A presencialidade de Aleluia era integral, na medida em que seu olhar, com a devida sutileza, era endereçado, um a um, aos que compunham a plateia. Sai daquela experiência imerso de curas e bênçãos.

Foi lá também que fui apresentado ao Aleluia, o Tincoã. Aquele que, com Erivaldo Souza Brito, Dadinho (Grinaldo Salustiano dos Santos) e Heraldo Costa Bouzas, foi o pioneiro responsável pelo cruzamento da harmonia afro-religiosa do Candomblé com a música popular do Recôncavo Baiano. Era de Aleluia aquele grave que abraçava a sobreposição harmônica vocal do trio. Vinte anos residindo em Angola, período consecutivo à gravação do último disco dos Tincoãs, foram o bastante para que eu não associasse Aleluia com seu conjunto original. Em que pese sua voz prencheendo o Cerrado inteiro, Aleluia, o Tincoã, apelava justamente ao silêncio como singela oração a sua santa Nanã para lamentar o sofrimento sem razão que seu povo ancestral sofre desde a escravidão. Lamentos que, ao passar pelo espectro dos Tincoãs, transformaria dor em força: evocaria a criação de um Brasil negro insurgente. Todos em compasso e harmonia guiados pela uníssona voz do último Tincoã vivo (no que tange, claro, à existência material).

A gira girou. Anos se passaram, e o universo converge novamente para que eu reencontre Aleluia. O Departamento de Difusão Cultural da UFRGS divulga o tradicional projeto Unimúsica, em sua programação 2025/2026. O projeto Entreluzeiro traria, em sua abertura, nada mais nada menos que Mateus Aleluia nas dependências da universidade. Mas a curta distância que separa meu apartamento do Campus Central, local onde se distribuiriam os ingressos para o show mediante um quilo de alimento não perecível, em razão das circunstâncias, se transfigurou naquela longa estrada do Pampa ao Cerrado que atravessei ao seu encontro pela primeira vez.

Ingênuo, como se nunca tivesse visto o mesmo acontecer em outros shows do projeto Unimúsica, cheguei tarde demais para a retirada do ingresso. Deixei meus três quilos de arroz como uma oferenda para que alguém lá de cima ouvisse meus apelos por uma entrada na hora do evento, mas sou teimoso para algumas coisas.

Sabia que, na noite de véspera do show, haveria uma mostra, na Sala Redenção, do documentário Aleluia, o canto infinito do Tincoã, em que ele, acompanhado pela diretora do filme, Tenille Bezerra, lá estaria para um papo sereno, mediado por Laila Garroni e Felipe Castellani. Nunca havia visto a sala de cinema tão lotada, um evento histórico (pelo menos para a minha geração). Mas o entusiasmo logo se transformou em lamento com a notícia que a produção recebeu de última hora: Aleluia ensaiou mais cedo e precisou descansar. A compreensão coletiva, embora com um bocadinho de frustração, se demonstrou na permanência de todos na sala, afinal, Aleluia é uma entidade que, enquanto tal, estaria presente em espírito de qualquer maneira. Enquanto a telona exibia o documentário, do público se escutava uma orquestra de soluços, risos, suspiros e, claro, o cantarolar que acompanhava, baixinho, quando Aleluia, da tela, entoava seus cânticos. “Se não fosse a música, como é que a gente ia conversar?” – indaga ele num dado momento do longa.

Naquele dia, havia acordado com uma contratura terrível na escápula. Não foi isso que impediu que eu fosse correndo no dia seguinte para, quem diria, conseguir a ficha número 13 da lista de espera. Enquanto a fila diminuía, conforme ressurgia das cinzas o ingresso de um abdicante, eu, embora já com o bilhete em posse, preferi seguir com meus recém-aliados, em virtude daquele sentimento de expectativa e esperança que necessitavam seguir nutrindo e que me contagiava. No último sinal, uma apoteótica liberação em massa de pelo menos uma centena de pessoas que, em linha reta, compunham a “fila dos desesperados que precede a porta”, como assim brinquei quando ainda fazia parte.

Dezesseis de setembro de 2025, passado das oito da noite: Salão de Atos da Reitoria lotado, discursos institucionais já proferidos. Finalmente se podia, sem mais circunstâncias adversas, acender em cântico a fogueira doce de Aleluia. Coisa castiça, coisa tão bonita, coisa tão faceira. Orientado pelo compasso harmônico do nosso remanescente Tincoã, trazido ao mundo pelos Orixás, tendo cruzado o Atlântico no caminho inverso dos navios negreiros, naquele instante, o espetáculo que emocionou a todos acontecia na cidade onde me criei. Mais que isso: ocupava o mesmo lugar e sob o mesmo teto, onde foi proferido por mim o discurso de formatura há onze anos, gozando da minha primeira noite como Bacharel em Ciências Sociais.

Durante toda essa jornada, compreendi o que o canto de Mateus Aleluia simbolizava para mim: a cura. Do cinza de São Paulo às cinzas de meu pai, invocadas a tal magnitude que, seguindo a coreografia do excelente jornalista que foi em vida, cá estou, pondo em prática seus ensinamentos póstumos e sua paixão extraordinária pela arte, sobretudo pela palavra escrita. Aleluia curou meus medos, meus lutos, minha alma. Posso dizer até que, depois do show, minha escápula foi também ungida pela sua aveludada voz. Milagrosamente ninados pelo canto do Aleluia, o gigante curandeiro devoto de Nanã concedeu o passe para que eu retornasse ao meu Shangrilá dourado, flutuando em realização, pronto para mais um início em cor.

 


Rodrigo Isoppo é bacharel em Ciências Sociais, mestre e doutor em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS. Atualmente desenvolve pesquisas sobre Planejamento Urbano, abordando as temáticas da narrativa, cidades e subjetividade.

 


As opiniões emitidas pelo autor não expressam necessariamente a posição editorial da Matinal.

Rodrigo Isoppo

Bacharel em Ciências Sociais, mestre e doutor em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS. Atualmente desenvolve pesquisas sobre Planejamento Urbano, abordando as temáticas da narrativa, cidades e subjetividade.

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