A eleição presidencial chilena foi atípica, não apenas pelo resultado esmagador obtido por José Antonio Kast (58%), o candidato da extrema-direita, que se tornou o presidente com mais votos da história do país. Mas também porque o segundo turno foi disputado justamente entre ele, um pinochetista declarado com fortes laços com a rede ultraconservadora internacional que se espalhou pelo mundo (foi presidente da Political Network for Values), e Jeannette Jara (42%), militante comunista e ex-ministra do Trabalho do governo Boric. Embora o Chile sempre tenha contado com um Partido Comunista influente, nunca havia alcançado esse protagonismo eleitoral com alguém de suas fileiras.
No entanto, contra o esperado, suas campanhas não se basearam nem numa narrativa antiditatorial ou antifascista por parte de Jara, nem no anticomunismo habitual que os candidatos de direita costumam exibir. Esse fato é indicativo de que esta eleição marca várias mudanças no cenário político chileno.
A primeira constatação é que a clivagem que marcou a transição chilena, democracia versus ditadura, deixou de operar. De fato, até quatro anos atrás, quando Gabriel Boric derrotou precisamente Kast, parecia impossível que um pinochetista declarado pudesse chegar a La Moneda. Se a direita conseguiu derrotar a centro-esquerda em duas ocasiões, foi graças a uma figura não identificada com a ditadura, o falecido Sebastián Piñera. Como em toda a região, a indiferença em relação à democracia vem aumentando, tornando-se particularmente forte entre os eleitores menos politizados dos setores populares. Por outro lado, desta vez, ao contrário de quatro anos atrás, vários políticos fortemente identificados com a Concertación, a coalizão de centro-esquerda que foi hegemônica durante a democratização, votaram em branco ou até apoiaram Kast, isto sim expressão de anticomunismo.
Em segundo lugar, quem definiu essa eleição foram os votos obrigatórios de novos eleitores. Desde o plebiscito constitucional de 2022, quando o progressismo sofreu a derrota eleitoral mais importante desde o retorno da democracia, o voto no Chile deixou de ser facultativo. Com isso, pouco mais de 5 milhões de novos eleitores foram incorporados ao cadastro eleitoral (um terço do total). Embora o progressismo tenha recebido com otimismo essa incorporação, devido ao alto índice de abstenção que existia nos setores populares, a verdade é que, em praticamente todas as eleições que se seguiram, eles se inclinaram mais a votar em candidatos ou posições de direita. A mais emblemática foi justamente a do plebiscito de 2022, que rejeitou a proposta constitucional fortemente social, feminista e ecologista elaborada para substituir o texto da ditadura, ainda em vigor. Para alguns analistas, esse revés marcou o fim antecipado do governo Boric, que estava no poder há apenas seis meses. Politicamente, esse resultado também solidificou um novo cenário político, no qual as principais preocupações passaram a ser: segurança, crise migratória e recuperação econômica. Embora em 2023 o Chile tenha rejeitado outra proposta constitucional, desta vez redigida pela direita e, em particular, pelo setor de Kast, o progressismo não recuperou a iniciativa nem fez Kast pagar o custo político de um segundo fracasso constitucional.
Por fim, a direita conseguiu transformar a eleição em um plebiscito contra o governo Boric, que não teve lua de mel e permaneceu estagnado em apenas 30% de apoio em quase todo o mandato. A maioria dos chilenos avalia negativamente o governo, algo que se acentua justamente entre os eleitores obrigados. A esquerda chilena chegou à La Moneda há quatro anos para transformar o mal-estar acumulado da revolta social de 2019 em um projeto político que mudasse o rumo do país, mas o setor acabou se transformando em fonte de novos aborrecimentos, perdendo a sintonia com os setores que dizia representar. Para Jeannette Jara, responsável pelas reformas mais bem avaliadas desse governo (redução da jornada de trabalho para 40 horas, salário-mínimo de 500 dólares e reforma previdenciária), o governo se tornou um fardo maior do que sua própria militância comunista. Ainda assim, no segundo turno, Jara conseguiu aumentar em quase 4 pontos a votação do Apruebo de 2022 (38%), considerado por muitos como o teto eleitoral do mundo progressista no novo cenário. Sua atuação e liderança foram amplamente valorizadas, mesmo sendo insuficientes para evitar a vitória de Kast. Sem ela o resultado poderia ter sido pior.
Basicamente, o principal problema do mundo progressista chileno é que não conseguiu falar para o novo eleitor obrigado que vem marcando a política nacional. Se a esquerda pretende voltar ao governo ou ser uma opção novamente, não pode simplesmente esperar que a agenda de retrocessos prometida por Kast provoque um mal-estar que os coloque de volta em La Moneda. Se a esquerda não for capaz de interpretar os anseios, as aspirações e as expectativas desta parcela do povo, é improvável que consiga se transformar em uma alternativa para o futuro e em um projeto político que represente as grandes maiorias.