Esta reportagem integra a newsletter Climática, produzida pela Matinal com apoio do Instituto Serrapilheira.
“Andar nas coxilhas sentindo as flechilhas das ervas do chão e ter os pés roseteados de campo” é um dos versos mais famosos da música nativista gaúcha. Apesar de compor parte essencial da cultura construída no estado, o ato descrito pela canção está tão ameaçado quanto o ecossistema que o torna possível.
O Pampa é hoje um dos biomas que mais perde vegetação nativa no Brasil, segundo o MapBiomas. Os campos conservados estão restritos a menos da metade da cobertura registrada em sua extensão sul-americana em 1985. Provocada pelo avanço da monocultura da soja sobre grande parte do território, a destruição do bioma é uma fonte de emissão gases do efeito estufa. Não só isso: a perda da riqueza biodiversa dos campos pampeanos acaba com um sumidouro de carbono tão importante quanto as florestas.
Localizada sob clima subtropical, a vegetação nativa do Pampa demanda a inversão da lógica tradicional para perceber a sua contribuição ao equilíbrio do clima. Por costume, florestas densas são reconhecidas como símbolo maior na luta pela mitigação das mudanças climáticas, característica que compõe só 12% do território na porção rio-grandense do bioma. O restante dele é composto por herbáceas e arbustos. Mesmo considerando as porções que transcendem fronteiras do Cone Sul, a área coberta por árvores ocupa menos de 10%.
Por essa razão, não é possível falar de desmatamento para se referir à degradação do Pampa. Pesquisadores, então, passaram a propor o termo “descampamento” para descrever a destruição imposta às áreas campestres ou supressão da vegetação nativa. “Lá, o som da destruição não é o de árvores caindo nem dos motores de caminhões carregados de toras”, escreve Jeferson Vizentin-Bugoni, biólogo e professor da Universidade Federal de Pelotas. “No máximo, vão passar alguma máquina ali para empilhar pedras, arrancar o toco de uma ou outra árvore. É muito fácil degradar o campo em termos práticos”, complementa, em entrevista à Matinal.
Apesar de fácil desmatar, não é tão fácil identificar esse descampamento. Pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), Tatiana Kuplich explica que os dados sobre ações humanas em cada paisagem no Brasil começaram a ser designados de forma mais fidedigna nos últimos anos. O Prodes, por exemplo, foi criado em 1980 especificamente para analisar a Amazônia, conhecida por árvores imponentes, que atingem até 70 metros de altura, como as gigantescas Sumaúmas. Foi só em 2023 que o sistema concluiu o primeiro mapeamento da vegetação não florestal da diversidade amazônica, composta também por savanas, campinas e campinaranas, campos gerais e vegetação pioneira de várzeas.
“Todos os biomas têm formações campestres. A Amazônia tem os campos amazônicos, a Caatinga tem muito campo. O Cerrado tem os campos cerrados e a Mata Atlântica, os campos de cima da serra. Não tem como só usar desmatamento”, explica.
Mas o que é o descampamento?
As flechilhas da composição de Jader Moreci Teixeira têm, como sugere o nome, uma estrutura similar a uma flecha. São espécies de Stipa e Piptochaetium, e pegam carona nas botas de quem transita pelos campos ou na pele de animais que compõem a fauna regional. É o que aconteceu com Ana Porto em uma de suas pesquisas de campo. “Isso é uma das coisas que mais me encanta. Trabalhar esse olhar, conseguir enxergar o que não é óbvio. Tem que se abaixar, ir ao nível do solo”, diz a pós-doutoranda em Ecologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Seu trabalho envolve o contato direto com a complexa trama formadora da matriz campestre.
Uma tendência evolutiva prejudica a percepção da biodiversidade do Pampa. “Estudos mostram que primeiro vemos bichos e depois as plantas, por uma questão de sobrevivência”, afirma Porto. Entre as plantas, a vegetação rasteira acaba de novo em segundo plano: primeiro enxergamos o que está à altura dos olhos. “Temos muito mais facilidade de enxergar caules, lianas e bromélias em cima das árvores”, diz a ecóloga. Uma das características intrínsecas às áreas de vegetação de baixo porte é que, enquanto nas florestas a biomassa mais significativa encontra-se acima do solo, nos campos as estruturas mais robustas são subterrâneas.
Mas as plantas herbáceas, com seus rizomas, estolões e xilopódios – estruturas que ficam escondidas abaixo da terra –, podem ser tão eficazes para o sequestro de carbono quanto as árvores. “Já tem estudo mostrando que o campo é um sumidouro de carbono tão importante quanto a floresta”, afirma Porto. O achado é reiterado por Jeferson Vizentin-Bugoni, que investiga o impacto das mudanças climáticas na biodiversidade tropical. “Pensamos em árvores pela questão cultural, mas o campo nativo tem muito carbono estocado no solo. No litoral do Rio Grande do Sul, temos a planta Andropogon Lateralis (capim-caninha). Ele é da altura de nossa cintura, talvez do peito, e o que tem de biomassa acima do solo tem também para baixo. Isso tudo é carbono estocado. Os campos temperados estão estocando carbono há muito tempo”, explica.
Se considerarmos a quantidade de carbono orgânico do solo por hectare, o Pampa apresenta estoque médio do componente superior ao da Amazônia. “O solo quando em estado de degradação libera o elemento para a atmosfera na forma de gás carbônico e metano, agravando as mudanças do clima”, afirma documento do MapBiomas. O estudo mostrou que, do total de 37 bilhões de toneladas de carbônico orgânico presente nos solos brasileiros em 2021, quase dois terços (63%) estavam em terras sob cobertura nativa estável. “O solo é um dos quatro grandes reservatórios de carbono do planeta, junto da atmosfera, dos oceanos e das plantas, que absorvem carbono em seu processo de crescimento”, detalha o mapeamento.
O metro quadrado mais diverso em plantas do país
Na primavera de 2024, ao caminhar pelos campos de Jaguarão, na fronteira com o Uruguai, Ana Porto e a equipe do Laboratório de Vegetação Campestre (LEVCamp) da UFRGS se depararam com essa biodiversidade que estoca carbono. Em um único metro quadrado de campo nativo, ela e os pesquisadores Mateus Schenkel e Fábio Torchelsen encontraram 64 espécies de plantas, uma parcela recorde entre os biomas do país.
Uma das espécies encontradas na pequena metragem é o gravatá (conhecido também como caraguatá e gravaterinho), planta que alcança, acima do solo, uma altura entre 40 e 80 cm. O que impressiona, no entanto, está invisível aos olhos.
À Matinal, Ana Porto mostra a estrutura subterrânea que compõe o vegetal, mais robusta do que o exposto à superfície. Xilopódios (regiões rígidas entre o caule e a raiz) armazenam água e nutrientes e um emaranhado de rizomas e estolões, análogos a caules, que resistem ao fogo e às perturbações causadas por animais. “Quando o gado vai dar o bocado, ele não corta esses rizomas, porque estão embaixo da terra”, ilustra a pesquisadora. O Pampa é um dos biomas onde é possível uma pecuária sustentável.
Pela forma descrita, o vegetal ainda armazena gemas de rebrote, para não perecer. “É um bioma muito resiliente quando essas estruturas estão salvas. Quando reviram o solo [para plantio de monoculturas, por exemplo], são essas estruturas que se perdem.”
Revelado pela análise da ecóloga e de seus colegas, o mundo escondido abaixo da terra em Jaguarão conta também com as espécies do gênero Paspalum. Sob esta categorização, a grama-forquilha (Paspalum notatum) pode ser considerada uma “Araucária dos Pampas”, não pela dimensão, mas pela abrangência e formato característicos. “Espécies de Paspalum e as espécies de Axonopus [como a grama-tapete] fazem a matriz campestre, esse verdinho. Elas são a base dessa matriz e depois outras espécies de capim e leguminosas vão se agregando”, explica Porto.
Exemplares de Oxalis, segundo a pesquisadora, também apareceram em abundância naquele metro quadrado descrito pela equipe do Laboratório de Vegetação Campestre da UFRGS. Dentro desse gênero e facilmente identificável pela cor rosa, as flores da azedinha chamam a atenção. A integrante da flora nativa brasileira é uma PANC (planta alimentícia não-convencional), podendo ser usada na culinária.
A Soliva, popularmente chamada de roseta, é outra espécie dentre tantas. “É uma riqueza de formas de ocupar o espaço, porque há nichos muito específicos. As espécies do Pampa têm estratégias distintas, e por isso são tão eficazes em cobrir totalmente o solo”, acrescenta Porto.
A observação minuciosa da parcela recorde feita pelo LEVCamp instigou outros pesquisadores a notarem dados similares. Colegas de Ana Porto registraram a presença de mais de 55 espécies de plantas em locais espalhados por todo o ecossistema natural do Rio Grande do Sul. Com isso, está em andamento a produção de um trabalho unindo essas descrições e novas descobertas de Porto, que encontrou a mesma diversidade em outras cinco áreas de Jaguarão.
O artigo indica que, mesmo em meio à crescente supressão, os locais com parcela recordes de pluralidade da flora não são incomuns, com ocorrência perceptível até mesmo em Eldorado do Sul, cidade próxima a Porto Alegre. Em 2023, um estudo publicado pelo professor da UFRGS Gerhard Overbeck e outros 120 pesquisadores já identificou 3.642 espécies que integram a flora do Pampa brasileiro – entre plantas, animais, fungos e bactérias foram registradas 12.503 espécies.
Os benefícios invisíveis dos campos
A impercepção botânica é o nome usado para representar a dificuldade em perceber a diversidade do Pampa. Para explicar a complexa relação entre a natureza e as necessidades humanas, um estudo de pesquisadores de diferentes nacionalidades sugere o uso do termo “benefícios dos campos para as pessoas”.
Além de regular e estocar carbono e servir de inspiração à identidade cultural do Rio Grande do Sul, esses territórios, quando preservados, proporcionam aspectos importantes para a população, de experiências espirituais a conservação dos polinizadores, essenciais à agricultura. Essas áreas também oferecem habitats adequados para a fauna silvestre, fornecimento de água, produção de forragem, controle da erosão e retenção de nutrientes no solo, possibilidades de turismo, recreação e apreciação estética.
A impercepção botânica é o nome usado para representar a dificuldade em perceber a diversidade do Pampa. Para explicar a complexa relação entre a natureza e as necessidades humanas, um estudo de pesquisadores de diferentes nacionalidades sugere o uso do termo “benefícios dos campos para as pessoas”.
Além de regular e estocar carbono e servir de inspiração à identidade cultural do Rio Grande do Sul, esses territórios, quando preservados, proporcionam aspectos importantes para a população, de experiências espirituais a conservação dos polinizadores, essenciais à agricultura. Essas áreas também oferecem habitats adequados para a fauna silvestre, fornecimento de água, produção de forragem, controle da erosão e retenção de nutrientes no solo, possibilidades de turismo, recreação e apreciação estética.

“Andar nas coxilhas sentindo as flechilhas das ervas do chão e ter os pés roseteados de campo” é um dos versos mais famosos da música nativista gaúcha. Apesar de compor parte essencial da cultura construída no estado, o ato descrito pela canção está tão ameaçado quanto o ecossistema que o torna possível.
O Pampa é hoje um dos biomas que mais perde vegetação nativa no Brasil, segundo o MapBiomas. Os campos conservados estão restritos a menos da metade da cobertura registrada em sua extensão sul-americana em 1985. Provocada pelo avanço da monocultura da soja sobre grande parte do território, a destruição do bioma é uma fonte de emissão gases do efeito estufa. Não só isso: a perda da riqueza biodiversa dos campos pampeanos acaba com um sumidouro de carbono tão importante quanto as florestas.
Localizada sob clima subtropical, a vegetação nativa do Pampa demanda a inversão da lógica tradicional para perceber a sua contribuição ao equilíbrio do clima. Por costume, florestas densas são reconhecidas como símbolo maior na luta pela mitigação das mudanças climáticas, característica que compõe só 12% do território na porção rio-grandense do bioma. O restante dele é composto por herbáceas e arbustos. Mesmo considerando as porções que transcendem fronteiras do Cone Sul, a área coberta por árvores ocupa menos de 10%.
Por essa razão, não é possível falar de desmatamento para se referir à degradação do Pampa. Pesquisadores, então, passaram a propor o termo “descampamento” para descrever a destruição imposta às áreas campestres ou supressão da vegetação nativa. “Lá, o som da destruição não é o de árvores caindo nem dos motores de caminhões carregados de toras”, escreve Jeferson Vizentin-Bugoni, biólogo e professor da Universidade Federal de Pelotas. “No máximo, vão passar alguma máquina ali para empilhar pedras, arrancar o toco de uma ou outra árvore. É muito fácil degradar o campo em termos práticos”, complementa, em entrevista à Matinal.
Apesar de fácil desmatar, não é tão fácil identificar esse descampamento. Pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), Tatiana Kuplich explica que os dados sobre ações humanas em cada paisagem no Brasil começaram a ser designados de forma mais fidedigna nos últimos anos. O Prodes, por exemplo, foi criado em 1980 especificamente para analisar a Amazônia, conhecida por árvores imponentes, que atingem até 70 metros de altura, como as gigantescas Sumaúmas. Foi só em 2023 que o sistema concluiu o primeiro mapeamento da vegetação não florestal da diversidade amazônica, composta também por savanas, campinas e campinaranas, campos gerais e vegetação pioneira de várzeas.
“Todos os biomas têm formações campestres. A Amazônia tem os campos amazônicos, a Caatinga tem muito campo. O Cerrado tem os campos cerrados e a Mata Atlântica, os campos de cima da serra. Não tem como só usar desmatamento”, explica.
Mas o que é o descampamento?
As flechilhas da composição de Jader Moreci Teixeira têm, como sugere o nome, uma estrutura similar a uma flecha. São espécies de Stipa e Piptochaetium, e pegam carona nas botas de quem transita pelos campos ou na pele de animais que compõem a fauna regional. É o que aconteceu com Ana Porto em uma de suas pesquisas de campo. “Isso é uma das coisas que mais me encanta. Trabalhar esse olhar, conseguir enxergar o que não é óbvio. Tem que se abaixar, ir ao nível do solo”, diz a pós-doutoranda em Ecologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Seu trabalho envolve o contato direto com a complexa trama formadora da matriz campestre.

Uma tendência evolutiva prejudica a percepção da biodiversidade do Pampa. “Estudos mostram que primeiro vemos bichos e depois as plantas, por uma questão de sobrevivência”, afirma Porto. Entre as plantas, a vegetação rasteira acaba de novo em segundo plano: primeiro enxergamos o que está à altura dos olhos. “Temos muito mais facilidade de enxergar caules, lianas e bromélias em cima das árvores”, diz a ecóloga. Uma das características intrínsecas às áreas de vegetação de baixo porte é que, enquanto nas florestas a biomassa mais significativa encontra-se acima do solo, nos campos as estruturas mais robustas são subterrâneas.
Mas as plantas herbáceas, com seus rizomas, estolões e xilopódios – estruturas que ficam escondidas abaixo da terra –, podem ser tão eficazes para o sequestro de carbono quanto as árvores. “Já tem estudo mostrando que o campo é um sumidouro de carbono tão importante quanto a floresta”, afirma Porto. O achado é reiterado por Jeferson Vizentin-Bugoni, que investiga o impacto das mudanças climáticas na biodiversidade tropical. “Pensamos em árvores pela questão cultural, mas o campo nativo tem muito carbono estocado no solo. No litoral do Rio Grande do Sul, temos a planta Andropogon Lateralis (capim-caninha). Ele é da altura de nossa cintura, talvez do peito, e o que tem de biomassa acima do solo tem também para baixo. Isso tudo é carbono estocado. Os campos temperados estão estocando carbono há muito tempo”, explica.
Se considerarmos a quantidade de carbono orgânico do solo por hectare, o Pampa apresenta estoque médio do componente superior ao da Amazônia. “O solo quando em estado de degradação libera o elemento para a atmosfera na forma de gás carbônico e metano, agravando as mudanças do clima”, afirma documento do MapBiomas. O estudo mostrou que, do total de 37 bilhões de toneladas de carbônico orgânico presente nos solos brasileiros em 2021, quase dois terços (63%) estavam em terras sob cobertura nativa estável. “O solo é um dos quatro grandes reservatórios de carbono do planeta, junto da atmosfera, dos oceanos e das plantas, que absorvem carbono em seu processo de crescimento”, detalha o mapeamento.
O metro quadrado mais diverso em plantas do país
Na primavera de 2024, ao caminhar pelos campos de Jaguarão, na fronteira com o Uruguai, Ana Porto e a equipe do Laboratório de Vegetação Campestre (LEVCamp) da UFRGS se depararam com essa biodiversidade que estoca carbono. Em um único metro quadrado de campo nativo, ela e os pesquisadores Mateus Schenkel e Fábio Torchelsen encontraram 64 espécies de plantas, uma parcela recorde entre os biomas do país.
Uma das espécies encontradas na pequena metragem é o gravatá (conhecido também como caraguatá e gravaterinho), planta que alcança, acima do solo, uma altura entre 40 e 80 cm. O que impressiona, no entanto, está invisível aos olhos.
À Matinal, Ana Porto mostra a estrutura subterrânea que compõe o vegetal, mais robusta do que o exposto à superfície. Xilopódios (regiões rígidas entre o caule e a raiz) armazenam água e nutrientes e um emaranhado de rizomas e estolões, análogos a caules, que resistem ao fogo e às perturbações causadas por animais. “Quando o gado vai dar o bocado, ele não corta esses rizomas, porque estão embaixo da terra”, ilustra a pesquisadora. O Pampa é um dos biomas onde é possível uma pecuária sustentável.
Pela forma descrita, o vegetal ainda armazena gemas de rebrote, para não perecer. “É um bioma muito resiliente quando essas estruturas estão salvas. Quando reviram o solo [para plantio de monoculturas, por exemplo], são essas estruturas que se perdem.”

Revelado pela análise da ecóloga e de seus colegas, o mundo escondido abaixo da terra em Jaguarão conta também com as espécies do gênero Paspalum. Sob esta categorização, a grama-forquilha (Paspalum notatum) pode ser considerada uma “Araucária dos Pampas”, não pela dimensão, mas pela abrangência e formato característicos. “Espécies de Paspalum e as espécies de Axonopus [como a grama-tapete] fazem a matriz campestre, esse verdinho. Elas são a base dessa matriz e depois outras espécies de capim e leguminosas vão se agregando”, explica Porto.

Exemplares de Oxalis, segundo a pesquisadora, também apareceram em abundância naquele metro quadrado descrito pela equipe do Laboratório de Vegetação Campestre da UFRGS. Dentro desse gênero e facilmente identificável pela cor rosa, as flores da azedinha chamam a atenção. A integrante da flora nativa brasileira é uma PANC (planta alimentícia não-convencional), podendo ser usada na culinária.

A Soliva, popularmente chamada de roseta, é outra espécie dentre tantas. “É uma riqueza de formas de ocupar o espaço, porque há nichos muito específicos. As espécies do Pampa têm estratégias distintas, e por isso são tão eficazes em cobrir totalmente o solo”, acrescenta Porto.
A observação minuciosa da parcela recorde feita pelo LEVCamp instigou outros pesquisadores a notarem dados similares. Colegas de Ana Porto registraram a presença de mais de 55 espécies de plantas em locais espalhados por todo o ecossistema natural do Rio Grande do Sul. Com isso, está em andamento a produção de um trabalho unindo essas descrições e novas descobertas de Porto, que encontrou a mesma diversidade em outras cinco áreas de Jaguarão.
O artigo indica que, mesmo em meio à crescente supressão, os locais com parcela recordes de pluralidade da flora não são incomuns, com ocorrência perceptível até mesmo em Eldorado do Sul, cidade próxima a Porto Alegre. Em 2023, um estudo publicado pelo professor da UFRGS Gerhard Overbeck e outros 120 pesquisadores já identificou 3.642 espécies que integram a flora do Pampa brasileiro – entre plantas, animais, fungos e bactérias foram registradas 12.503 espécies.
Os benefícios invisíveis dos campos
A impercepção botânica é o nome usado para representar a dificuldade em perceber a diversidade do Pampa. Para explicar a complexa relação entre a natureza e as necessidades humanas, um estudo de pesquisadores de diferentes nacionalidades sugere o uso do termo “benefícios dos campos para as pessoas”.
Além de regular e estocar carbono e servir de inspiração à identidade cultural do Rio Grande do Sul, esses territórios, quando preservados, proporcionam aspectos importantes para a população, de experiências espirituais a conservação dos polinizadores, essenciais à agricultura. Essas áreas também oferecem habitats adequados para a fauna silvestre, fornecimento de água, produção de forragem, controle da erosão e retenção de nutrientes no solo, possibilidades de turismo, recreação e apreciação estética.

Mas o contato com um modelo agrícola predatório, que converte o solo em lavouras de commodities, ocasionou a maior perda proporcional de vegetação campestre dentre os países que abrigam o ecossistema. A causa principal é a expansão de áreas agrícolas para o plantio de soja e silvicultura.
Os números mais recentes do MapBiomas mostram que a conversão do solo para o uso agrícola nessas paisagens havia aumentado 2,1 milhões de hectares entre 1985 e 2022. Ao mesmo tempo, a silvicultura passou a ocupar mais 720 mil hectares. No total, quase 3 milhões de hectares foram eliminados nesse período, uma área equivalente a 58 municípios como Porto Alegre. Os campos, já frágeis, foram reduzidos de 9 milhões de hectares para apenas 6,2 milhões. Em 38 anos, 32% do que existia foi perdido, e hoje apenas 0,5% do Pampa está em áreas protegidas.
O próprio Ministério do Meio Ambiente chegou a sinalizar que o agronegócio insiste em negar a realidade, fugindo do fato de que é um dos principais responsáveis pela emissão de gases de efeito estufa no país. O setor critica o Plano Clima, que atribuiu às atividades agropecuárias 68% das emissões nacionais em 2022 e cobra ações para reduzir os níveis de emissão.
O Pampa abarca o caos?
No Pampa, uma das atividades identificada como motor do desmatamento na Amazônia pode coexistir sem destruí-lo. “Um caso singular em que a produção animal e a conservação da biodiversidade geralmente integram sistemas produtivos com notável sustentabilidade ambiental”, afirma relatório do MapBiomas que revelou a destruição na região.
O habitat ecológico onde hoje existe o Pampa já abrigou animais da megafauna, durante o Pleistoceno. Foi lar também de populações indígenas ainda antes da colonização, que já caçavam, ainda que de forma limitada, e depois acolheu o gado trazido da Europa. “A pecuária chegou aqui há [mais ou menos] 350 anos, com bovinos europeus, que não existiam antes. São animais exóticos, mas ocuparam um nicho, um habitat ecológico que tinha sido perdido quando se foi a megafauna, de outra era geológica”, explica Carlos Gustavo Tornquist, professor do Departamento de Solos da UFRGS, em entrevista à Matinal. “Há publicações sobre uma série de animais, inclusive mamíferos, que pastavam e garantiam a existência desse campo. Quando vieram os bovinos, eles entraram num sistema que estava esperando por pastadores.”
Pela razão mencionada por Tornquist, as plantas descritas por Ana Porto se beneficiam com algum nível de distúrbio. “O campo abarca o pastejo”, argumenta a bióloga. “E quando não é manejado, ele perde diversidade”. A questão crucial é compreender a medida das perturbações.
Tornquist ressalta que não é qualquer tipo de pecuária que conserva o Pampa, o que demanda que essa atividade seja menos intensiva. “Usando o conhecimento que se tem já sobre os campos, de quantos animais pode suportar, quando entra o gado, quando sai, quando descansa. Maximizar a produção sem degradar o sistema, essa é a lógica”. Ações nesse sentido tem sido estimuladas pela Alianza del Pastizal, iniciativa que busca unir modelos sustentáveis de produção e renda nos países que compartilham o dever de proteger os campos nativos.
Em artigo da revista piauí durante as enchentes no Rio Grande do Sul, o professor da UFRGS Gonçalo Ferraz, reiterou a possibilidade de usar a produção de carne bovina para lidar com a emissão de gases de efeito estufa no estado. “Embora menos visível pela quantidade de vegetação acima do solo, o manejo de pastagens naturais do Pampa para produção de carne bovina de alta qualidade oferece uma alternativa de descarbonização muito credível”, escreveu na publicação.
Doutor em ecologia e biologia evolutiva pela Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, Ferraz cita um estudo de pesquisadores da Universidade de Santa Maria para exemplificar o quanto esse manejo sustentável pode contribuir para conter a crise climática. “Uma pastagem natural bem manejada pode retirar da atmosfera o equivalente a 1.800 kg de dióxido de carbono por hectare por ano. Este valor, que leva em consideração não só a parte aérea da vegetação, mas também o solo e as emissões de metano pelo gado bovino, estendido a toda a área de pastagem do bioma Pampa, corresponde a 10,82% das emissões do Rio Grande do Sul em 2022.
A captação de carbono atmosférico em ambientes terrestres é, sim, uma estratégia válida para mitigar o aquecimento global, mas o monocultivo de árvores em ambientes campestres é um péssimo caminho para implementar essa estratégia”, concluiu, referindo-se à liberação autorizada pelo governo de Eduardo Leite (PSD) de aumentar a área dedicada ao plantio de árvores exóticas como o eucalipto e o pinus.
É preciso levar a sério a emergência climática
Um cálculo feito pelo biólogo Jeferson Vizentin-Bugoni assusta qualquer um preocupado com a consciência campestre, movimento que tenta evitar a extinção e valorizar as formações ecológicas não-florestais.
O cientista conta que, em média, 140 mil hectares de campos nativos são todos os anos, desde 2012. “Se seguirmos perdendo essa média anualmente, os 6,1 milhões de hectares de campos nativos restantes serão eliminados em 44 anos. “Ou seja, se o ritmo de conversão dos campos nativos não desacelerar, principalmente devido ao avanço das lavouras de soja, silvicultura e a mineração, não teremos mais campo nativo no Rio Grande do Sul dentro de quatro décadas”.
Os efeitos de parte dessa destruição já chegaram, e embalam os extremos do clima, confirmando o resultado negativo da ação humana no planeta. Um estudo sobre o impacto das enchentes de 2024 na biodiversidade gaúcha, feito pelo Laboratório de Biologia da Conservação da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), revela que 430 mil hectares de ecossistemas nativos foram inundados durante a crise climática do ano passado. Desses, 120 mil hectares são de florestas e 102 mil de campos nativos.
A análise indica que a área afetada se situa nos biomas Pampa e Mata Atlântica, afetando 825 km² de uma rede escassa de unidades de conservação (UCs). Cerca de 17% das áreas para uso sustentável e 26% das áreas de proteção integral sofreram danos, e áreas de preservação permanente (APPs), onde 67% já não contavam com vegetação nativa, tiveram 1.440km² inundados.
Segundo o artigo, “a falta de vegetação nativa piorou as inundações catastróficas que testemunhamos, destacando um ciclo crítico, onde a degradação da vegetação nativa aumenta a vulnerabilidade a eventos extremos, o que por sua vez corrói ainda mais a resiliência de ecossistemas já ameaçados”.
A fauna também foi bastante ameaçada. Entre anfíbios, répteis, aves e mamíferos, 747 espécies sofreram com o extremo climático, número que corresponde a 70% da classe de vertebrados terrestres do Rio Grande do Sul.
Para compreender como a flora do Pampa pode se comportar diante da mudança do clima em eventos futuros, a pesquisadora Isadora Quintana, do Programa de Pós-graduação em Genética e Biologia Molecular (PPGBM) da UFRGS, selecionou espécies para identificar possíveis alterações. A partir de duas situações estimadas pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) – uma previsão moderada e outra pessimista –, Quintana observou que, com exceção de duas das oito espécies analisadas, em ambos os cenários o aquecimento do planeta deve causar a perda de habitat para a maioria das plantas estudadas.
Apenas a orquídea-da-praia (Epidendrum fulgens) e a Turnera sidoides subsp. carnea conseguiriam se adaptar frente às adversidades climáticas, panorama que, se considerarmos outras variáveis, ainda não garante um futuro para elas. À Matinal, a bióloga explica que as duas espécies não são necessariamente especiais. “Meu trabalho faz uma projeção baseada no clima. Aquelas duas espécies estão adaptadas a ambientes com altas temperaturas, mas isso não significa que sejam necessariamente mais adaptáveis às mudanças climáticas. O ambiente para onde elas vão se expandir precisam estar disponíveis também”.

Segundo Quintana, o destino da migração pode também estar degradado, ou ter sofrido com enchentes e demais intempéries. “A questão é: quais ambientes essas espécies vão encontrar e o efeito que elas terão em lugares antes não ocupados. Mesmo as espécies que se expandem não têm futuro garantido”.
Seja qual for a variável, não há tempo a perder, alerta o pesquisador Jeferson Vizentin-Bugoni. “Mesmo os piores modelos climáticos parecem agora ser otimistas. Tivemos entre 2023 e 2024 a sequência de meses com maior média de temperatura do planeta dos últimos 170 mil anos. Não é alarmismo, é um problema sério.” Sem ações de conservação de governos e de quem vive no Pampa, ter os pés roseteados de campo pode ficar apenas na canção.