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“Sempre é tempo de ter coragem para encarar as mazelas do passado”, diz presidenta da Comissão da Verdade da UFRGS

Roberta Baggio lidera comissão que busca identificar estudantes e professores perseguidos pela ditadura militar

“Sempre é tempo de ter coragem para encarar as mazelas do passado”, diz presidenta da Comissão da Verdade da UFRGS
Professora Roberta Baggio preside a Comissão da Verdade da UFRGS | Foto: Flávio Dutra / UFRGs

A Comissão da Memória e Verdade da UFRGS completa um ano de trabalhos nesta quarta-feira, dia 10.  No final de novembro, o grupo realizou sua primeira sessão aberta com depoimentos de alunos que foram vítimas de perseguição política pela Ditadura Militar. Participaram Dilza de Santi, João Ernesto Maraschin e Henrique Finco, que estudaram na universidade entre as décadas de 60 e 70..

Uma segunda sessão de depoimentos abertos deve ocorrer no primeiro semestre de 2026. A comissão investiga tanto as expulsões feitas no corpo docente, quanto perseguições contra alunos. No final dos trabalhos vai disponibilizar registros de abusos da ditadura militar. A universidade mantém um site sobre a perseguição de professores, e agora, outra página também divulga os resultados dessa comissão.

Entre a primeira audiência e às vésperas da conclusão do primeiro ano de trabalhos da comissão, Roberta Baggio, professora da Faculdade de Direito da UFRGS e que preside os trabalhos conversou com a Matinal sobre o avanço dos depoimentos coletados e a importância do trabalho que está sendo realizado.

Qual é a tua avaliação da primeira audiência pública da Comissão da Memória e da Verdade que reuniu alunos? Os depoimentos deles ajudaram a elucidar uma parte da perseguição que a UFRGS desconhecia? Como será feito o registro disso?

Roberta Baggio: Essa primeira audiência pública foi muito importante, primeiro porque foi a primeira que nós fizemos. Nós fizemos questão de ouvir os estudantes porque é uma parte da história da UFRGS que a gente conhece menos, a gente conhece muito dos expurgos dos professores. Assim a gente reúne mais peças desse quebra-cabeça que era o modus operandi da ditadura dentro da estrutura universitária. Todos os estudantes, por exemplo, dentro dessa sua militância e da fuga, da perseguição política, fizeram várias conexões com o resto do Brasil, estiveram em outros lugares e foram igualmente perseguidos. Então, em alguma medida, essa inteligência do Estado brasileiro, nessa época do terror, do terrorismo de Estado, encontrava as pessoas onde quer que elas estivessem. Havia uma relação de confiança e desconfiança o tempo inteiro. Então, dois dos depoentes comentaram que, muito provavelmente, aquele colega era um infiltrado entre eles.

A gente ainda precisa sentar, amadurecer dentro do grupo, olhar os outros documentos e ouvir mais depoimentos. Esses depoimentos da audiência pública foram gravados e vão ficar com o nosso acervo. Temos muitos outros testemunhos que a gente está coletando. A audiência pública é esse momento em que a gente seleciona um seleto grupo para representar, nesse caso, por exemplo, a categoria dos estudantes. Aqueles três representaram toda a juventude da universidade que resistiu à ditadura naquele momento.

E também os depoimentos foram dois deles na década de 1960 e o último, do Henrique Finko, na década de 1970. O que eu acho, e tem outra coisa que me chamou a atenção nos testemunhos, é a disponibilidade da estrutura do Estado para essa perseguição. Então, várias coisas que eles relataram só poderiam ter acontecido, porque, de fato, a gente estava numa ditadura. Então, que seria uma coisa inimaginável num tempo de instituições funcionando, de democracia formal, que é a própria disponibilidade institucional e social do arbítrio. Acho que o grande avanço dessa audiência é promover um desbloqueio da democracia. É conseguir trazer à tona a maior parte dos fatos, os fatos que ocorreram, conseguir fazer uma reflexão numa esfera pública sobre os eventos da ditadura. Isso é algo importante. 

Além disso, a questão de um encontro intergeracional, a ideia de você promover, receber aquelas histórias como um legado e dessas gerações poderem também, das atuais gerações poderem assumir a responsabilidade da defesa da democracia.

Quais serão os próximos passos? A Comissão lançou um formulário para que a sociedade possa contribuir com depoimentos, está funcionando? Há muito ainda a ser recuperado?

RB: A campanha de contribuição vai começar a ter repercussão a partir de agora com a divulgação no site e no instagram. A gente espera que consigamos alcançar o maior número de pessoas possível, mas sabemos das limitações geracionais. A geração que viveu a ditadura da universidade já está idosa e nem todos têm inclusão digital, mas não podemos não tentar.

É difícil mapear o que ainda falta ser recuperado. Não temos como saber exatamente o universo total desses documentos, penso que esse é um processo contínuo. Mas, dentro das nossas possibilidades, estamos tentando chegar ao máximo possível de documentações.

Como a Comissão pretende engajar os estudantes mais jovens, para os quais a ditadura parece cada vez mais distante

RB: Estamos promovendo editais para engajá-los nos trabalhos das duas frentes da comissão: busca e análise de documentos e testemunhos, além de eventos dessa natureza, como as audiências. Tão ou mais importante do que essas ações é conseguirmos avançar em eventos de memória que possam ser institucionalizados pela universidade. É bem provável que o nosso relatório aborde a importância dessas questões.

Comissão deve realizar nova audiência pública em 2026 | Foto: Flávio Dutra / UFRGS

A audiência pública ocorreu no mesmo dia em que a UCS respondeu ao MPF dizendo que não tiraria o nome de um ditador de um memorial, com a justificativa de "preservar a memória". Como enxergas esse tratamento divergente/díspar desse período tão grave da história brasileira?

RB: É uma disputa de memória e, na minha opinião, o problema está em como essa história e essa memória são abordadas. Manter a memória de que o Geisel fez parte do processo de usurpação do poder legítimo de um presidente eleito e que foi conivente com um projeto de terrorismo de Estado que matou, torturou e impediu que as instituições democráticas prevalecessem, é bastante importante. Mas parece que esse não é o tom do referido memorial. Em uma democracia, não faz sentido celebrar o arbítrio e naturalizar os crimes que foram cometidos pelo próprio Estado. Precisamos romper com esse ciclo vicioso que normaliza a violência de Estado e o autoritarismo. Eu lamento muito que iniciativas desse tipo ainda encontrem espaço para existir na sociedade brasileira.

Além do que tu já me contou, o que fica desse processo de investigação e apuração?

RB: Que sempre é tempo de ter coragem para encarar as mazelas do passado. Apesar da UFRGS ter demorado para instaurar uma Comissão da Verdade, esse processo nos convoca a assumir uma responsabilidade com a democracia, oportunizando que sejamos uma instituição melhor.

Olívia Geyer

Estagiária de jornalismo. Estudante da Famecos/PUCRS. Contato: olivia@matinal.org

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