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Uma triste melodia nas bibliotecas das escolas públicas do RS

Uma triste melodia nas bibliotecas das escolas públicas do RS
Biblioteca do Colégio Estadual Julio de Castilho, em Porto Alegre | Foto: Valentina Bressan/Matinal

Estava no saguão de uma escola estadual gaúcha fazendo observações para a minha pesquisa de doutorado. Enquanto tirava fotos de alguns cartazes no mural, ouvi o som de um piano. Questionei uma funcionária da limpeza sobre de onde vinha a música e ela sinalizou para a biblioteca. Entrei na sala escura, com apenas uma lâmpada fluorescente que insistia em piscar, e, em meio a prateleiras abarrotadas de livros cobertos de pó e traça, encontrei um jovem negro, de cabelos raspados e roupa esporte, tocando com maestria um velho piano disposto no fundo da biblioteca. Em pé ao lado, uma colega acompanhava a execução das notas. 

Durante os seis meses em que viajei com frequência para registrar a rotina dessa escola pública presenciei três estudantes do Ensino Médio fazendo música – e alegria – naquela biblioteca em ruína. Decidi trazer esse registro para o meu primeiro texto na Matinal porque estamos na reta final de mais uma Feira do Livro de Porto Alegre. Enquanto milhares de pessoas circulam pela Praça da Alfândega imbuídas dos encantos da literatura, nas nossas escolas públicas, o espaço de formação de leitores é o retrato fiel – e cruel – da política educacional da precariedade.

Em 2019, logo depois de assumir o primeiro mandato como governador, Eduardo Leite determinou que professores deslocados para o trabalho nas bibliotecas das escolas estaduais retomassem suas funções em sala de aula. Não houve contratação temporária de bibliotecários, muito menos a realização de concurso público. A "nova façanha" – para remeter ao slogan da gestão – foi o fechamento desses espaços fundamentais no processo de ensino-aprendizagem, na formação crítica dos cidadãos e na construção das identidades dos estudantes. Como escreveu Luis Fernando Verissimo, a "biblioteca é o lugar onde começamos a nos conhecer".

Pois na política educacional da precariedade, muito se fala em protagonismo estudantil e em educação de qualidade, mas não há condições mínimas para a garantia do direito à educação. Enquanto o estudante insiste em fazer música, o cenário da biblioteca da escola onde estuda é de abandono. Professores me contaram que fazem, voluntariamente, mutirões de organização do acervo, mas sem um profissional para o trabalho cotidiano, o espaço mais parece um depósito – de piano velho a livros. O mesmo se repete em outras instituições de ensino da rede estadual.

Agora a façanha começa a ser replicada em escolas municipais de Porto Alegre, com remoção de professores que atuavam nas bibliotecas e encerramento de projetos de referência em leitura. 

O Conselho Regional de Biblioteconomia informou à Matinal, em reportagem publicada em julho, que a rede estadual possui cerca de 20 bibliotecários para atender a um universo de 2,3 mil escolas. Neste ano tive a oportunidade de fazer pesquisa em uma das poucas instituições que contam com esse profissional. O acervo é extenso, organizado, há atividades de mediação de leitura, projetos. Um oásis em meio às inúmeras dificuldades enfrentadas pela escola. 

Nas entrevistas que realizei, chamou a minha atenção a fala de um estudante do 3º ano do Ensino Médio que havia cursado todo o Ensino Fundamental em uma instituição privada. Ao comentar sobre o que mais gostava na escola, ele citou a biblioteca, principalmente porque está sempre aberta aos estudantes, ao contrário do colégio anterior, onde era necessário fazer agendamento prévio. 

Que em tempos de Feira do Livro possamos nos indignar com a política educacional da precariedade que transforma espaços de leitura e de apropriação do conhecimento em depósitos. E que possamos nos mobilizar pelo direito de todos os nossos estudantes a bibliotecas abertas. Eles já fazem muito – inclusive música de ótima qualidade – em situações precárias. Imagina se tivessem acesso a condições adequadas para aprender, se desenvolver e construir o futuro?

As opiniões emitidas por colunistas não expressam necessariamente a posição editorial da Matinal.
Ângela Chagas

Ângela Chagas

Professora da Faculdade de Educação da UFRJ, formada em Pedagogia pela Unisinos e em Jornalismo pela UFRGS. Tem doutorado em Educação pela UFRGS e integra o Núcleo de Políticas e Gestão da Educação da universidade. Escreve mensalmente na Matinal.

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