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(296 A coisa certa a fazer – Capítulo 5: Uma promessa de doutorado, um Poison Dior e uma canção

(296 A coisa certa a fazer – Capítulo 5: Uma promessa de doutorado, um Poison Dior e uma canção
Foto: Orian Lev Ari / Unsplash

A visão do homem morto na praia da Boa Viagem, a memória da escuridão da síncope pós-sarapatel e do rosto de meu avô desaparecido me acompanharam por um tempo, como que sinalizando a urgência da vida, de tudo o que eu queria ser. Depois do Recife, comecei a pensar em doutorado. Eu queria ser doutora. Terezinha incentivava, mas queria que todo mundo fosse para o exterior. Doutorado bom era doutorado fora do Brasil. Ela e o marido eram doutores pela Université Paris-Sud na França, e a tese dela na estante do laboratório era uma coisa linda de se ver. Minha orientadora me inspirava. Também o Jogo da amarelinha na estante de casa. Eu lia Cortázar desde a graduação, andava pelas ruas, ruelas, pontes e cafés de Paris com os seus personagens latinos buscando a si mesmos, queria ser um deles.

Confirmando a primeira impressão que tive dela, uma pessoa apaixonada pelo que fazia, Terezinha empenhava-se na expansão da pós-graduação na Faculdade e participava de um acordo bilateral França-Brasil para a formação de doutores e o desenvolvimento de pesquisas conjuntas. De uma de suas missões de trabalho, trouxe a promessa de uma orientação de doutorado para mim e para José, outro orientado seu. Trouxe também o primeiro perfume importado que usei, um Poison Dior

Nosso orientador francês seria o mesmo que orientara Terezinha. Ela estava empolgada. Eu queria estar, mas me agastou um pouco o fato de ele trabalhar com temas que não me tocavam de forma especial. Terezinha conhecia bem minhas áreas de interesse, minhas paixões, que aos poucos se afastavam do domínio específico do trabalho dela, tinham mais a ver com o trabalho de Antony, o canto das rodas da carreta que eu ouvira em Corumbá, e ainda ecoava sobre minha inteligência. Mas imagino que prevaleceram para ela a facilidade de contato, os interesses institucionais e até mesmo próprios, o que ela julgava importante. Talvez ela pensasse que eu era apenas uma jovem sonhadora e ambiciosa, aceitaria qualquer coisa que parecesse grande. Não deixava de ter razão. Meu desejo de viver em Paris era tamanho que achei a questão do objeto de estudo menor e aceitei a oferta, agradecendo a oportunidade e também o perfume.

Comecei a estudar francês. Meu companheiro também. A ideia era irmos todos, eu, ele e as crianças. Terezinha me encorajava. O suporte para as mães e pais estudantes ou trabalhadores na França era basicamente a escola infantil, não havia babás ou empregadas domésticas, pelo menos não ao preço que uma ou mesmo duas bolsas de doutorado pudessem pagar, mas com isso eu estava acostumada, era forte, me ajeitaria. Os europeus não eram afetivos, não havia benevolências. Isso era duro. Mas sobrevivia-se. Ela tinha certeza de que seus filhos a amavam e não carregavam traumas. Pelo contrário, nascer no estrangeiro, ser alfabetizado em outra língua tinha sido uma grande experiência para eles. A França era fascinante e a Université, de excelência. Tinha valido a pena. E eu achei que valeria a pena para mim também.

Meu companheiro defendeu o mestrado mais ou menos na mesma época em que eu e assumiu um posto de professor horista numa universidade privada em uma cidade próxima. As aulas eram à noite, uma pedreira, mas também um pouco mais de grana, um pé de meia, e uma experiência docente necessária para quem pretendia um doutorado, a gente ponderou. Eu, assim que terminei o mestrado, fui convidada para trabalhar junto à Fundação onde prestei concurso e não fui absorvida como docente. Se tratava de um trabalho técnico junto a um serviço de informação ao público, recebendo o valor de uma bolsa de aperfeiçoamento da Fundação Estadual de Pesquisa. Menos do que eu precisava e merecia. Uma gambiarra, mas encarei como uma oportunidade. No mínimo, seria uma experiência interessante até que a bolsa de doutorado fosse aprovada. Estava tudo se encaminhado. Mas eu via nos olhos do meu companheiro uma sombra, uma coisa que eu não alcançava e preferi acreditar que fosse cansaço. Um idioma novo a aprender, dois empregos e duas crianças pequenas para cuidar sombreariam o olhar de qualquer um.

Talvez estivéssemos tomando um café, depois de uma aula de francês, ou almoçando na Lancheria, ou tomando um vinho branco barato, ouvindo os blues jazz de sempre, depois de ter colocado as crianças para dormir. Não sei, não lembro. Mas sei que perguntei meu guri, o tempo tá passando, quase certo que vou conseguir a bolsa, tu já falou com teu orientador, tem alguma perspectiva de doutorado pra ti lá? 

Talvez tocasse Pat Metheny: are you going with me?

E veio a resposta. Em um único fôlego.

Não vai dar, neguinha, eu não vou, não tenho nada pra fazer lá, a carreira acadêmico-científica não é pra mim, eu sei, não é, esse sonho não é meu, não quero largar minhas coisas, quatro anos é muito tempo pra ficar sem fazer o que faço de melhor que é meu trabalho técnico aqui. Mas tu pode ir, a gente dá um jeito.

Passei meses com insônia, acordando de madrugada, tendo pesadelos, procurando o jeito. Minha cabeça doía, meu corpo doía, meus olhos afundavam. Que jeito poderíamos dar? Eu ir sem as crianças, vê-las quinze dias ou um mês por ano, durante quatro anos? O inverso, as crianças irem comigo? Eu só conseguia ver isso, sim, elas iriam comigo! Mas como eu poderia cuidar delas sozinha? E que direito tinha eu de privá-las da companhia do pai?

Mesmo sem ter achado o jeito para viajar sem sofrer mortalmente, fui fazer a prova de proficiência em francês na Aliança Francesa. Ser proficiente na língua era requisito para a implementação da bolsa de estudos e a compra das passagens com verba do Acordo Brasil-França. Meu desempenho foi medíocre, mas fui aprovada porque o Acordo previa um período inicial de adaptação e um curso intensivo do idioma no país estrangeiro.

José também fez a prova, e conseguiu uma nota melhor do que a minha. Pegamos o mesmo ônibus para voltar para casa, e eu lhe falei que estava difícil para mim porque meu companheiro tinha desistido de ir. A esposa de José também não queria ir, não via o que fazer lá fora. Mas ele achava que no final das contas ela iria. Seria difícil, mas eles enfrentariam juntos, ela poderia fazer um curso avançado de francês, um curso de artes, talvez. Engravidar, por que não? E se ela não fosse? Ele iria do mesmo jeito. 

Me senti fraca e sem vontade de continuar a conversa. 

Não era com José que eu precisava falar.

Terezinha esmagou seu cigarro no cinzeiro, expirou uma fumaça espessa e, sem olhar para mim, disse que era uma pena, talvez eu fosse lamentar no futuro, e que minha decisão complicava um pouco as coisas para ela, para a Instituição, mas que ela entendia, eu só não precisava ter demorado tanto tempo para comunicar minha desistência, havia burocracias para atender, pessoas a quem respeitar. Faltava vinte dias para o voo que me levaria ao aeroporto Charles de Gaulle, a passagem estava comprada, meu orientador francês me aguardava. Ela disse que entendia, mas não entendia. Não tinha ideia do que me custava estar ali ouvindo aquela preleção, do tamanho da minha vergonha. A partir daquele momento, senti sobre mim o peso da força ambígua de Terezinha, a força de uma mãe abandonada. E fui a filha não pródiga, nunca voltei.

No dia que teria sido o dia de minha partida para a França, meu filho estava com quatro anos recém feitos e minha filha, com um. Eu tinha vinte e oito. Na noite desse dia, saí com amigos e bebi além da conta, cheguei em casa de madrugada. As crianças dormiam tranquilas. Meu companheiro me esperava acordado, sentado na cama, no escuro. Me aninhei no seu abraço sentindo que estávamos quebrados. No toca-discos, rodavam os doces bárbaros. Cantavam baixinho.

O seu amor 

Ame-o e deixe-o ir aonde quiser 

Ir aonde quiser 

Ir aonde quiser 

Ame-o e deixe-o brincar 

Ame-o e deixe-o correr

Ame-o e deixe-o cansar 

Ame-o e deixe-o dormir em paz 

 

Não consegui não chorar. Mas acompanhei a música, chorei baixinho, ninguém escutou.


Stela Rates é escritora e pesquisadora. 


As opiniões emitidas pela autora não expressam necessariamente a posição editorial da Matinal.

Stela Rates

É pesquisadora e escritora.

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