Confira todos os textos da edição #302
Florestania – Uma conversa no coração da Amazônia, por Natália Jung
Rodrigo Simon de Moraes: "As mais interessantes experiências literárias se apresentam como problema", por Luís Augusto Fischer
Ruy Castro: "Nunca tinha me ocorrido tratar da Guerra", por Luís Augusto Fischer
O Chico letrista de excelência, por Luís Augusto Fischer
Ecos da Terra – Rio Bonito do Iguaçu, por Alê Bruny
O eterno retorno da enchente, por Tiago Segabinazzi
Proust-à-porter: Castas, por Claudia Laitano
As invasões bárbaras, por José Roberto Iglesias
Vento dando pra ver, por Augusto Darde
Diário da guerra do sono: Capítulo II – Primeira batalha, por Cristiano Fretta
A gente acordava ainda bem noite. Lembro de uma prancha amarela amarrada em cima do carro, pegando sereno fora da garagem. A luz do poste refletia nela, dava pra ver que tava molhada, um cheiro de água que só a madrugada tem, riacho voando sem barulho misturado com cheiro daquela borracha de prancha guardada durante todo o ano na despensa. Estávamos saindo de Lajeado pra Rondinha.
Eu dormia até Porto Alegre. Não tinha graça viajar no escuro. Mas gostava do cheiro do meu travesseiro misturado com cheiro de carro, mesmo que doesse apertar a orelha na janela. O chiado do pneu no asfalto fazia dormir melhor que ventilador. Foram as primeiras vezes que acordei antes do sol. Bem depois, com 11 anos, eu ia acordar antes do sol pra ir pra aula em Estrela, tinha que pegar o ônibus das seis e meia.
O sol nascia na ponte do trilho de trem, quase chegando em Canoas. Canoas tinha aquelas antenas antes de entrar, onde mandam a eletricidade pros postes. Já era legal de olhar. Depois vinha o Trensurb. Às vezes, dava sorte de passar um bem quando eu tava em cima da ponte. Mais pra frente, vinha a Praça do Avião. Eu ficava um pouco pra baixo de não dar pra parar, dar uma volta no avião, mas também nunca pedi, tinha isso do avião passar normal como passa no céu, tu tem uns segundos pra olhar ele, ficar um pouco triste.
A primeira parada era pra espreguiçar e encontrar o resto da família ali na Polícia Rodoviária, na Free Way, a gente ia se dar oi, espreguiçar junto e combinar de chegar junto. Lembro muito do meu vô Adão esperando fora do carro dele. Ele com um boné de espuma, uma chave ou coisas penduradas no cinto, as pernas finas. Lembro de primos, a gente trocava café da manhã entre os carros, uns tinham bolo, outros tinham chá, outros tinham suco. A minha irmã era grande, levava Ruffles.
A Free Way era chata, só o início era bom porque eu ficava na esperança de ver um avião, o aeroporto é do lado, às vezes dava sorte de ver um pousando ou decolando.
Mas o início mesmo do que chamamos felicidade era quando chegava na Lagoa dos Barros. Ali a gente já tava no anúncio da praia, o sol batendo torto na marola, o vento dando pra ver, praia é isso, vento dando pra ver, e a lagoa tinha um pouco de areia também, umas plantas verdes finas que parecem cabelo e dão em areia e fazem mais o vento dar pra ver. No outro lado do asfalto, aqueles morros com placas, MADRUGA foi uma das primeiras palavras que li na vida, a viagem pra Rondinha me alfabetizou em inúmeros sentidos. Contornar a Lagoa dos Barros é uma das melhores lembranças que tenho de toda a minha vida, uma das melhores sensações possíveis que já senti. Esse anúncio que ela é, esse pedaço de estar chegando, esse início de uma sucessão de dias, as nuvens que correm rápido embaixo do sol, esse monumento da manhã.