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As Marias e o retrocesso de 40 anos na educação de Porto Alegre

Diretora de uma escola municipal no interior do Rio Grande do Sul, Maria foi retirada do cargo com a troca de prefeito. Mesmo com amplo apoio da comunidade escolar, ela não era da "confiança" do político, que preferiu colocar na função uma pessoa ligada ao seu partido.

Era início dos anos 1990 e naquela época, outra Maria, também professora, lutava em diversas frentes para que o que aconteceu com a sua xará não se repetisse. Ajudou a construir o capítulo de educação da Constituição Federal, que colocou a gestão democrática como princípio da educação brasileira, e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Trabalhou para que as nossas escolas e universidades se tornassem espaços de participação e de formação cidadã.

Trago as histórias das Marias para falar sobre mais um retrocesso na política educacional de Porto Alegre. Desta vez é a aprovação da Lei que dá ao prefeito Sebastião Melo (MDB) poder absoluto para escolher as direções das escolas municipais. A legislação rompe com 40 anos de eleição direta de diretoras pelas comunidades escolares.

Na prática, o que aconteceu com Maria lá no início dos anos 1990 é a grande “novidade” da política educacional porto-alegrense. Alguns desavisados podem até questionar o meu argumento, dizer que o projeto do Executivo aprovado na Câmara de Vereadores prevê a realização de prova, análise de currículo, entrevista. Pois eu respondo afirmando que não passam de encenações para justificar uma suposta escolha por critérios técnicos já que, conforme esclareceu a própria prefeitura, "a designação final para a função caberá ao prefeito". Ou seja: o prefeito pode colocar quem ele quiser no cargo – e até destituir da função, como já fez no início do ano. A história de Maria se repete.

Muito pertinente que seja assim depois da prisão de uma secretária da educação de Melo indiciada por corrupção em um caso em que até o filho do prefeito é investigado. Vale destacar que foram diretoras eleitas democraticamente pelas comunidades escolares que contribuíram para a realização da investigação da Polícia Civil por desvio de dinheiro público na compra de materiais didáticos e kits pedagógicos que somam R$ 43 milhões em gastos com verbas da Secretaria da Educação.

Na literatura acadêmica sobre gestão escolar, há a compreensão de que ser diretor ou diretora de escola é uma função pública de caráter político-pedagógico, o que justifica a escolha com participação de educadores, estudantes e famílias. A Lei do Plano Nacional de Educação, tão lutada por Maria, reforça esse entendimento, ao trazer uma meta específica que aborda a necessidade de consulta prévia à comunidade escolar.

Infelizmente, menos de um quarto das escolas públicas brasileiras têm suas direções eleitas com a participação das comunidades, segundo dados do Censo Escolar compilados pelo professor e pesquisador do tema Ângelo Souza. Sem participação, a abertura ao contraditório fica reduzida, há menos diálogo e construções coletivas. Não é à toa que o retrocesso de Porto Alegre é a regra num país fortemente marcado por desigualdades e pelo autoritarismo. 


A história que mencionei no início é de Maria de Lourdes Both Chagas, minha mãe. Eu tinha seis anos quando ela perdeu a função de diretora. Nunca esqueci. A segunda história é de Maria Beatriz Luce, minha orientadora no mestrado e no doutorado na UFRGS e quem me ensinou a transformar a indignação em ação. Pelas duas, eu escrevo este texto, pois o registro das lutas do passado também é uma forma de enfrentamento dos desmandos do presente.

As opiniões emitidas por colunistas não expressam necessariamente a posição editorial da Matinal.
Ângela Chagas

Ângela Chagas

Professora da Faculdade de Educação da UFRJ, formada em Pedagogia pela Unisinos e em Jornalismo pela UFRGS. Tem doutorado em Educação pela UFRGS e integra o Núcleo de Políticas e Gestão da Educação da universidade. Escreve mensalmente na Matinal.

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