Uma semana antes de Antonio Hohlfeldt revelar à imprensa que o Theatro São Pedro não tinha servidores suficientes para manter a programação de 2026 no Multipalco, o governador Eduardo Leite (PSD) enviou à Assembleia Legislativa o Projeto de Lei (PL) 439, que prevê “qualificar entidades como organizações sociais”.
Se aprovado, o PL de Leite vai permitir que o estado estabeleça contratos de gestão com entidades privadas sem fins lucrativos – como associações de amigos – para assumir serviços em todas as áreas, da organização agrária à cultura. Em regime de urgência, o PL 439 faz parte de um pacote de projetos enviados por Leite que tranca a pauta da Assembleia Legislativa a partir de 9 de dezembro.
Embora possa servir como solução para a falta de funcionários no Theatro São Pedro, o PL também abre caminho para a extinção de vários órgãos e fundações do estado. “No Brasil, quando uma organização social (OS) assume serviços, se vê um repasse de recursos e uma repercussão muito maiores do que no caso das organizações da sociedade civil (OSC) ou das organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIP)”, explica Aragon Dasso, professor da faculdade de Administração Pública da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Na prática, quando a gestão é assumida por uma OS, o órgão ou fundação costuma ser extinto. “A OS vai receber concurso orçamentário para prestar o serviço que aquele órgão prestava, então o governo pode extinguir a fundação ou órgão. Há inclusive a possibilidade de que a OS receba bens públicos em regime de cedência”, explica Dasso.
A justificativa do PL é suprir uma lacuna na legislação gaúcha, que já regulamentou as OSCIP em 2008, no governo Yeda Crusius (PSDB). Já as OSCs foram regulamentadas pela lei federal 13.019, de 2014, no governo Dilma.
Cada tipo de organização assume uma relação diferente com o poder público: as OS firmam contratos de gestão; as OSCIP firmam termos de parceria; as OSC firmam termos de colaboração, termos de fomento ou acordos de cooperação. No caso das OS, que Leite quer agora regulamentar, sempre há repasse de recursos públicos.
No PL de Leite, são citados como objetivos fomentar a descentralização de serviços públicos, reduzir formalidades burocráticas e custos, melhorar a eficiência e aumentar a integração entre público e privado. Para o professor da UFRGS, as justificativas apontam para a agenda privatista do governo gaúcho.
“Transferir serviços para OS, OSCIP ou OSC é uma forma de privatização. Podemos chamar de terceirização também, mas na prática está privatizando porque transfere o serviço público para um ente privado”, explica.
“O governo Leite é habilidoso na nomenclatura: ele não vai chamar de privatização, mas de publicização, de desestatização. Essa é uma estratégia desde os anos 1990”, conclui Dasso.
Projetos similares ao 439 foram propostos durante os governos de Germano Rigotto (MDB), Yeda Crusius e José Ivo Sartori (MDB), sem sucesso. Para o deputado Miguel Rossetto (PT), ao apresentar o PL em regime de urgência, Leite quer evitar audiências públicas sobre o tema. O professor Aragon Dasso concorda: “Se não fosse a crise no Multipalco, o PL ficaria escondido.”. Antonio Hohlfeldt disse não ter conhecimento do projeto quando tornou pública sua luta para recompor os quadros do Theatro São Pedro.
Solicitamos um posicionamento da Casa Civil para esclarecer os objetivos de Leite com a proposta, mas o órgão nos encaminhou à Secretaria da Cultura (Sedac), como única indicada pelo Piratini para comentar a respeito. Em resposta à Matinal, a Sedac afirmou, após a demissão de Hohlfeldt, que a programação de 2026 para o Multipalco está mantida, com o secretário-adjunto da Fundação Theatro São Pedro, Fabiam Thomas, assumindo como presidente interino. Assim que a transição se complete e um diagnóstico seja feito, “será possível definir um plano de ações que assegure a realização dos espetáculos, bem como a estrutura de pessoal necessária para o funcionamento pleno do Multipalco”.
Quanto ao PL 439, a Sedac apontou, em resposta à Matinal, que “o projeto não se restringe a associações de amigos. Ele fundamenta-se na busca por uma gestão pública mais democrática e transparente, com participação social e fortalecimento da sociedade civil, sempre respeitando os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”. A pasta afirma que a legislação vai garantir ao estado a “ a possibilidade de realizar a prestação de serviços públicos de forma mais ágil, eficiente, com priorização no controle de resultados e com regras claras de governança e controle social.”
Contatamos o mandato do deputado Frederico Antunes (PP) em busca de um posicionamento da bancada governista, mas a assessoria de comunicação informou que o parlamentar só comentará o PL na ocasião de sua votação, e nos direcionou à Casa Civil — que por sua vez indicou a Sedac como responsável pelos posicionamentos.
PL ameaça fundações públicas, que já sofrem sucateamento
No exemplo do Multipalco, a Fundação Theatro São Pedro pode ficar ameaçada com a aprovação do PL. “A própria lei federal que introduziu esse modelo de gestão no Brasil extinguiu duas fundações – uma, casualmente, era da área da cultura”, conta Dasso. O professor se refere à Fundação Roquette Pinto.
Antes de 1998, casos de repasse da gestão de serviços públicos para organizações desse tipo eram incomuns. Nesse ano, o então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) sancionou a lei 9.637, de proposta similar à de Leite: qualificar entidades como Organizações Sociais (OS). A lei federal, de cara, já extinguiu duas fundações: o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, que pertencia ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a Fundação Roquette Pinto.
Casos como o da Fundação Theatro São Pedro não são novos no cenário da cultura gaúcha. De acordo com o professor Dasso, o processo privatista inclui etapas de sucateamento e precarização dos serviços. “Tanto que a maioria das fundações públicas que acaba extinta já nem tem mais servidores a serem cedidos”, ilustra.
Claudio Knierim, que foi diretor da Fundação Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore (IGTF) de 2011 a 2014, enfrentou dificuldades similares às de Hohlfeldt à frente do São Pedro.
“Nessas fundações, criadas nos anos 1980 e 90, o quadro de servidores está em extinção. Também não há previsão orçamentária para pagar os ressarcimentos previstos quando se tenta pedir um servidor cedido da administração pública. Por isso, Hohlfeldt insistia na urgência de um novo plano de cargos e salários”, comenta Knierim.
A solução para o IGTF, à época, foi trabalhar junto da Associação de Amigos da Fundação IGTF. “Os contratos eram feitos via CLT ou outros tipos de contrato precários, que não são próprios da administração pública. Também consegui firmar um convênio entre a educação e a cultura para ceder professores de história para a IGTF, porque não havia recursos para o ressarcimento. Vivi esse drama por quatro anos, até conseguir aprovar um plano de cargos e salários”, conta Knierim.
Durante a gestão de Antonio Hohlfeldt, que foi demitido na última terça-feira (25), a Fundação Theatro São Pedro rompeu em 2020 com a Associação de Amigos do Theatro São Pedro (AATSP), após negociações fracassadas para assinar um novo termo de cessão de uso. Em maio do mesmo ano, apuração do Nonada Jornalismo denunciou a demissão de mais de 30 profissionais de quadros técnicos e operacionais de AATSP.
Ainda em 2020, a Associação passou a ser investigada por desvio de recursos públicos. Em outubro deste ano, os ex-dirigentes da AATSP foram absolvidos por falta de provas após serem acusados por desvio de R$ 9,5 milhões, peculato e corrupção passiva.
Para o professor da UFRGS, Hohlfeldt tentava evitar as relações conflituosas e, frequentemente, cercadas de corrupção entre entes públicos e organizações sociais (OS). “Quando Hohlfeldt rompe com a associação de amigos, é porque identifica traços de corrupção e patrimonialismo. Ao pleitear concurso público e reestruturação de carreira, é porque ele entende ser isso que gera solidez para uma instituição que deve promover cultura no estado”, avalia. “Em uma OS, os trabalhadores não passam por concurso. Nada impede que os gestores contratem amigos e familiares. Não é preciso fazer licitação para compra de materiais, por exemplo”, conclui.
O que muda com o PL de Leite para as OS?
Diferentemente dos projetos apresentados em outros governos, o PL 439 veda a cessão de servidores de qualquer ente da administração pública para as organizações sociais, ponto considerado polêmico anteriormente. O PL também proíbe que gestores das OS exerçam cargo de chefia ou função de confiança na administração pública na mesma área em que a entidade atua, mas servidores públicos podem trabalhar na OS em regime CLT, desde que não haja incompatibilidade de horários e que não exerça atribuições de fiscalização, avaliação ou liberação de recursos.
Para firmar um contrato de gestão, o governo fará uma seleção pública entre as OS interessadas e qualificadas para a atividade em questão – exceto quando só houver uma OS qualificada para o objetivo. O contrato poderá durar até cinco anos. Antes, a lei original falava que a escolha se daria por ato discricionário do estado. “A seleção pública é o mínimo que se espera do ponto de vista da impessoalidade. Não deixa de ser uma privatização”, avalia Dasso.
Para Cristiano Max, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da PUCRS, o PL dá um formato robusto para relações que já existiam no meio da cultura. “Pelo viés da cultura, me parece que há uma intenção de acelerar, melhorar qualidade ou liberar a execução de projetos, porque muitas vezes existem obstáculos da burocracia governamental. A intenção é de colocar para a iniciativa privada, mas pelas parametrizações exigidas, me parece que buscam parceiros robustos e com capacidade técnica para dar celeridade em coisas que o governo não conseguiria”, analisa.
O PL ainda prevê que, para se qualificar como organização social, a entidade sem fins lucrativos deve contar com conselho fiscal, conselho diretivo e conselho de administração. Os conselhos devem contar com membros do poder executivo, representantes da organização e da sociedade civil.
“É um espaço gigantesco para corrupção e ineficiência”
Na opinião do deputado estadual Miguel Rossetto (PT), o governador apresentou uma “bomba” para a Assembleia Legislativa. “Quase no final de seu governo, ele encaminha em regime de urgência um projeto que desmonta toda a estrutura pública do estado. Não se trata de uma obra, um evento, uma construção, mas de terceirizar políticas públicas permanentes”, afirma o parlamentar.
“O estado já apresenta uma fragilidade enorme em fiscalizar, acompanhar esses serviços públicos. Agora, serão milhares e milhares de contratos que exigirão orçamento e fiscalização. É um espaço gigantesco para corrupção e ineficiência.
Não estamos falando de uma obra, uma estrada, um evento, mas de políticas públicas permanentes”, observa Rossetto. “É um erro estratégico. O ingresso por concurso e a estabilidade dos funcionários públicos são conquistas de toda a sociedade, que tem direito a serviços públicos qualificados de forma permanente.”