Confira todos os textos da edição #300
- Clássicos de agora e de sempre, por Luís Augusto Fischer
- O que pensam os escritores gaúchos mais lidos do século 21, por Luís Augusto Fischer
- Sobre a elitização da leitura numa livraria de shopping e a invisibilidade das livrarias de rua, por Marlon Pires Ramos
- O fim da literatura é o fim do mundo, por Paulo Damin
- É verdade esse bilete?, por Gonçalo Ferraz
- Narrativas porto-alegrenses: Dez histórias na cidade, por Luís Augusto Fischer
- Face a face com a barbárie, por Juremir Machado da Silva
- A coisa certa a fazer – Capítulo 10: Enfim, o estrangeiro, por Stela Rates
O título parece nome de antigos programas de rádio: “Clássicos de agora e de sempre”, diria o locutor, tendo ao fundo uma cortina musical com muito violino e melodias melosas. As novas gerações talvez não consigam imaginar que, no mundo anterior à internet, no tempo em que só havia duas ou três estações de televisão e umas 15 estações de rádio (AM, apenas) na cidade, o camarada muitas vezes tinha que se contentar em ouvir “Clássicos de agora e de sempre” enquanto fazia os temas de casa, no possivelmente único aparelho de recepção de rádio existente no lar. Mas não é disso que se trata aqui.
Ocorre que entre novembro de 2024 e maio de 2025, elaboramos e aplicamos uma pesquisa para saber quais são os livros clássicos gaúchos de todos os tempos, e quais os considerados mais importantes do século 21. Século que, não sei se o leitor ou a leitora percebeu, já evaporou, em um quarto de sua duração, na longa procissão dos tempos rumo à eternidade.
Foi justamente esse número redondo, 25 anos, que sugeriu a pesquisa, levada a efeito por Joana Battisti da Silva, bolsista de Iniciação Científica do curso de Letras da UFRGS, Luciana Neves Nunes, professora do departamento de Estatística da UFRGS, e este que assina.
O trabalho envolveu bastante preparação, alguns testes e depois uma campanha nas redes, em busca de leitores que se dispusessem a preencher um questionário virtual com essas orientações:
Primeiro
Cite o título de até três dos melhores livros de literatura gaúcha do século 21 (publicados a partir do ano 2000). *Se possível, cite também os respectivos autores.
Para os fins da pesquisa, considera-se literatura gaúcha aqueles que se passam no RS e/ou foram produzidos por escritores gaúchos. Enquadra-se como livro de literatura: romance, conto, poesia, crônica, quadrinhos, memória e ensaio.
Segundo
Cite o título de até três dos melhores livros de literatura gaúcha de todos os tempos. *Se possível, cite também os respectivos autores.
Para os fins da pesquisa, considera-se literatura gaúcha aqueles que se passam no RS e/ou foram produzidos por escritores gaúchos. Enquadra-se como livro de literatura: romance, conto, poesia, crônica, quadrinhos, memória e ensaio.
O leitor atento lembrará que, não faz muito, a Folha de S. Paulo divulgou uma lista dos livros mais importantes do século. Foi uma eleição para reunir “o melhor da literatura brasileira do século 21”. No grupo de eleitores, críticos literários, jornalistas, curadores de eventos literários, donos de livraria, pesquisadores universitários e outros. Numa palavra, gente profissional do meio literário, num total de 101 pessoas. O resultado foi amplamente divulgado, em maio deste ano.
Entre os vinte e cinco mais, figuraram os escritores sulinos – nosso foco aqui – Jeferson Tenório, com O avesso da pele (3º lugar), Angélica Freitas, com Um útero é do tamanho de um punho (13º), Michel Laub com Diário da Queda (21º), Natália Borges Polesso, com Amora (23º) e José Falero, com Os supridores (23º). Cinco em 25.
Nossa pesquisa tem muitas diferenças. A começar pelo recorte estadual: perguntamos pelos mais importantes livros – de literatura, ficção ou não – publicados por escritores gaúchos (por nascimento ou vida) e em dois recortes temporais – um exclusivo para livros lançados no século 21, outro para os melhores livros de qualquer tempo. Obtivemos 300 respostas, de gente relativamente mais variada do que o do júri da Folha.
Em 1992
Mas ainda antes de expor os dados da pesquisa, cabe outra lembrança. Em maio de 1992, por iniciativa e produção de Sergius Gonzaga, a Zero Hora publicou reportagem com o título “Os dez mais da literatura gaúcha”. O júri era especializado – escritores, editores, professores, intelectuais, livreiros, 40 ao todo. O resultado fotografa um momento anterior a duas gerações de escritores que apareceram e se consolidaram no estado a partir do ano 2000, mais ou menos – a geração de Letícia Wierzchowski, Daniel Galera, Michel Laub, Cláudia Tajes e tantos outros, e depois a geração de Paulo Scott, Natália Polesso, José Falero e Angélica Freiras, entre outros.
(Revendo a lista do júri, contam-se nove mulheres, apenas. Em termos etários, os mais jovens eram João Armando Nicotti, Charles Kiefer, Paulo Bentancur, e este que aqui assina, os únicos sub-40.)
Essa pesquisa resultou nos seguintes quadros:
1. O tempo e o vento, Erico Verissimo
2. Os ratos, Dyonélio Machado
3. A ferro e fogo, Josué Guimarães
4. Memórias do coronel Falcão, Aureliano de Figueiredo Pinto
5. Ibiamoré, o trem fantasma, Roberto Bittencourt Martins
6. Videiras de cristal, Luiz Antonio de Assis Brasil
7 e 8. (empatados) Incidente em Antares, Erico Verissimo, e O centauro no jardim, de Moacyr Scliar
9 e 10. (empatados) Camilo Mortágua, Josué Guimarães, e Estrada nova, Cyro Martins
1. Erico Verissimo
2. Josué Guimarães
3. Luiz Antonio de Assis Brasil
4. Dyonélio Machado
5. Moacyr Scliar
6. Cyro Martins
7. Lya Luft
8. Aureliano de Figueiredo Pinto
9. Roberto Bittencourt Martins
10. Tabajara Ruas
Essas duas listas chamam a atenção em vários sentidos. São quatro autores da geração de 1930 (Erico, Dyonélio, Cyro Martins e Aureliano de Figueiredo Pinto), um de idade intermediária (Josué) e os demais estreados nos anos 1970. Entre os dez romances, nenhum de autoria feminina; a única escritora a comparecer, na segunda lista, é Lya Luft.
Do ponto de vista étnico, ela é também a única pessoa de ascendência germânica, fazendo coro com Scliar, o único judeu, sem haver aqui referência a alguém italodescendente (já estava publicado O quatrilho, de José Clemente Pozenato, desde 1985, livro que não tinha ainda alcançado consagração, ao menos entre estes eleitores, nem adaptado para o cinema, que o consagraria em 1995) ou a alguém afrodescendente (não havia nenhum romancista negro gaúcho com leitura significativa até então). Igualmente não havia escritor que se reconhecesse como descendente dos povos originários. Os demais oito são lusodescendentes.
Essa configuração pode ser lida como um sinal de que se vivia o auge da formação cultural tradicional no estado, quando nem as populações negras ou indígenas, nem as derivadas da colonização europeia tinham alcançado força coletiva notável. Vale apontar, porém, que dois dos títulos, entre os dez romances, têm como tema a vida de colonos germânicos, A ferro e foto e Videiras de cristal, romance que depois passou a se chamar A paixão de Jacobina, por causa de sua adaptação para o cinema.
Em 2020
Em novembro de 2020, aqui mesmo na Parêntese, número 54, publicamos outra pesquisa, que envolveu 105 respondentes (convidados foram quase 200), entre escritores, jornalistas e leitores em geral. A pergunta foi: quais os três livros brasileiros de ficção mais importantes do século 21?
Foram citados 120 títulos, e abaixo estão os mais votados, com seis votos ou mais: como se pode ver, a votação foi muito dispersa, havendo algumas dezenas com apenas um voto e o vencedor tendo recebido tão-só 12 votos, como se vê abaixo. Detalhe importante: se perguntava por livros brasileiros, não gaúchos.
Doze
K - Relato de uma busca - Bernardo Kucinski
Dez
Um defeito de cor - Ana Maria Gonçalves
Nove
Cinzas do Norte - Milton Hatoum
Eles eram muitos cavalos - Luiz Ruffato
Oito
O Filho Eterno - Cristovão Tezza
Sete
A chave da casa - Tatiana Levy
Dois irmãos - Milton Hatoum
Nove Noites - Bernardo Carvalho
Olhos d`água - Conceição Evaristo
Seis
A Resistência - Julián Fuks
Amora - Natalia Borges Polesso
Barba ensopada de sangue - Daniel Galera
Budapeste - Chico Buarque
Leite derramado - Chico Buarque
O avesso da pele - Jeferson Tenório
Ponciá Vicêncio - Conceição Evaristo
Pode-se ver uma boa variedade de autores, homens mas também muitas mulheres (quatro, para nove homens), assim como pessoas negras (três). Quanto a escritores gaúchos, aparecem três nomes, Daniel Galera, Natália Polesso e Jeferson Tenório. Na matéria que a Parêntese publicou, fizemos levantamentos de outras ordens – quais as editoras mais citadas, quais as cidades-sede das editoras, qual a idade e a localização geográfica dos respondentes, etc.
A pesquisa atual
Quem são os respondentes do questionário atual? Alguns gráficos vão mostrar.
Perguntamos primeiro como cada um se definia em sua condição de leitor. “Leitor leigo”, quer dizer, não ligado diretamente ao campo profissional da literatura, é metade, ficando a outra metade com “alunos de Letras” e profissionais mesmo.

Quanto a autodeclaração de raça e gênero, há dominâncias claras. Quase 90% se têm como brancos, e quase 63% são mulheres cisgênero.


Comparando com o júri de 40 pessoas que votou naquela enquete de 1992 (comparação com grande precariedade pela discrepância de universos envolvidos, mas ainda assim interessante), uma imensa diferença no quesito gênero: lá eram menos de um quarto as mulheres, aqui elas são quase dois terços.
Perguntamos também a autopercepção de classe, e o resultado não surpreende: mais de 90% se declara pertencente ao universo da classe média (média alta, média ou baixa), com nada menos que 40% fixando-se na classe média-média:

Quanto à origem dos votantes, também uma grande concentração: em Porto Alegre, 43%; em cidades da Grande Porto Alegre, 6%; no interior do Rio Grande do Sul, 34%; fora do estado e do país, 9% (e outros 9% de não respondentes ao item). Quanto à idade, leitores dominantemente maduros: acima de 40 anos são 58%, ficando os restantes abaixo dessa idade (com a mesma taxa de votantes que não declararam idade). Somos estes, os leitores.
Os livros do século 21 consagrados em 2025
Agora vejamos a lista dos livros de literatura (aqui englobando os gêneros romance, conto, poesia, crônica) lançados no século 21 mais citados pelos respondentes.
1. Os supridores, de José Falero (2020), e O avesso da pele, Jeferson Tenório (2020), com 48 indicações cada.
3. Barba ensopada de sangue, Daniel Galera (2012), 19.
4. Amora, Natália Borges Polesso (2015), 18.
5. A casa das sete mulheres, Letícia Wierzchowski (2002), 14.
6. Louças de família, Eliane Marques (2023), 12.
7. Mas em que mundo tu vive?, de José Falero (2021), 11.
8. Um útero é do tamanho de um punho, de Angélica Freitas (2012),9.
9. Ela se chama Rodolfo, de Julia Dantas (2022), 8.
10. O diário da queda, de Michel Laub (2011), 7.
Tomando a lista dos dez mais lembrados, chama a atenção que temos cinco autoras e cinco autores, uma mudança de patamar absolutamente notável com o que tínhamos em 92, mesmo descontado o fato de que lá a pergunta se restringia apenas ao gênero romance. Além disso, três dos nove escritores (Falero aparece com dois títulos, em primeiro e em sétimo lugar) são pessoas negras, também novidade notável.
Para ampliar um pouco o relato, vale dizer que, com cinco menções, aparecem cinco títulos: Vera, de Falero (2024); O inverno e depois, de Luiz Antonio de Assis Brasil (2016); Marrom e amarelo, de Paulo Scott (2019); Lágrimas na chuva, de Sérgio Faraco (2002); e Mãos de cavalo, de Daniel Galera (2006). A notar, a presença de um livro de memórias, o de Faraco, entre quatro romances.
Com quatro votos, outros seis títulos: A estranha ideia de família, de Julia da Rosa Simões (2022); A mulher submersa, de Mar Becker (2021); Água turva, Morgana Kretzmann (2024); Porto Alegre Blues, de Pedro Gonzaga (2023); Diorama, de Carol Bensimon (2022); e Deixe o quarto como está, de Amílcar Bettega (2002).
A lista completa de títulos citados alcança a cifra de 321.
Autores jovens já consagrados
Os autores mais citados, somados todos os seus títulos publicados no século 21, formam uma lista igualmente interessante:
1. José Falero, com 65 indicações
2. Jeferson Tenório, 53
3. Daniel Galera, 29
4. Natália Borges Polesso, 22
5. Letícia Wierzchowski, 17
6. Luiz Antonio de Assis Brasil, 14
7. Eliane Marques, Lya Luft e Martha Medeiros, cada uma com 12
10. Angélica Freitas, 11
Aqui temos seis escritoras, para quatro escritores, dois destes negros. Uma verdadeira revolução, passadas três décadas daquela pesquisa de 1992. Naturalmente, nem o leitor nem aquele que aqui escreve acha que a literatura existe ou se justifica apenas por causa da condição pessoal dos autores dos livros, os quais, no fim das contas, existem para criar as obras, que depois serão lidas e então sim passarão a ser relevantes, como é o caso presente. Mas não deixa de chamar a atenção a mudança no perfil de gênero, raça e condição social que se observa nas últimas duas décadas no Rio Grande do Sul e no Brasil.
Os melhores livros gaúchos de todos os tempos
Esta pergunta nasceu por causa de uma indagação, que nem chegava a ser uma suspeita: será que autores mais consagrados, que viveram e publicaram no século 20 e circulam há mais tempo, inclusive em contextos oficiais (são leitura escolar, constam em programas de concursos, viraram nome de rua ou equipamentos culturais, etc.), continuariam a ser significativos na leitura? Ou teriam deixado essa condição em favor dos mais recentes?
Aqui vai a lista dos dez livros mais citados, tendo ao lado o nome do autor, o ano de edição e o número de votos de cada um, tal como votados.
1. O tempo e o vento, Erico Verissimo (1949) – 135 votos
2. Incidente em Antares, Erico Verissimo (1971) – 32
3. Contos gauchescos, João Simões Lopes Neto (1912) – 26
4. Os ratos, Dyonelio Machado (1935) – 25
5. Morangos mofados, Caio Fernando Abreu (1982) – 19
6. O centauro no jardim, Moacyr Scliar (1980) e O continente, Erico Verissimo (1949) – 16
8. O avesso da pele, Jeferson Tenório (2020) – 15
9. Os supridores, José Falero (2020) e A casa das sete mulheres, Letícia Wierzchowski (2002) – 11
As respostas a esta questão poderão receber alguma análise mais fina (os autores da pesquisa prometem um artigo alentado sobre os resultados) que indague, por exemplo, quais as preferência de leitura conforme idade: pode bem ser que, num universo de leitores majoritariamente maduros, acima de 40 anos, como ficou consignado acima, autores e livros do século 20 sejam ainda referência; ao contrário, pode bem acontecer que para os leitores mais jovens, de menos de 40 anos, a lista dos melhores livros de todos os tempos contemple mais autores já do século 21. A conferir.
Em todo caso, em números grandes (e com a exclusão das mesmas duas autoras já mencionada), a pesquisa chegou a resultados que consagram os autores do século 20 sobre os do novo século: entre os dez primeiros livros citados, apenas 3 foram publicados no século 21, e os três ocupando as três últimas posições neste ranking. Disparado entre os demais aparece Erico Verissimo, seguido de Simões Lopes Neto, Dyonélio Machado, depois Caio Fernando Abreu e Moacyr Scliar.
Em termos geracionais, temos um autor do tempo da Primeira República, Simões Lopes Neto, dois representativos da geração que floresceu nos anos 1930, Erico (que aparece com três títulos nesta contagem) e Dyonélio, e outros dois geração 1970, Caio e Scliar. Letícia é da primeira hora do novo século, e Falero e Tenório figuras da mais recente geração.
Os mais importantes autores gaúchos de todos os tempos
Somados todos os votos, chegamos aos números finais na apuração dos autores mais lidos, mais lembrados, mais importantes, tomando sempre a cautela de lembrar que se trata de uma sondagem de opinião, apenas. Vai abaixo a lista dos dez mais mencionados, com o número de ocorrências de cada um, considerados todos os títulos de cada autor.
1. Erico Verissimo, 213
2. João Simões Lopes Neto, 33
3. Josué Guimarães, 32
4. Dyonélio Machado e Moacyr Scliar, 27
6. Caio Fernando Abreu, 21
7. Luiz Antonio De Assis Brasil, 18
8. Jeferson Tenório, 17
9. José Falero e Luis Fernando Verissimo, 16
Como explicar esse grupo? Como entender a disparidade entre Erico e os demais? A força do circuito escolar de leitura e de outras formas de consagração terá a ver com a impressionante marca de Erico, mais do que a força evidente de sua obra? Matéria para ficar pensando enquanto se toma um mate.